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quinta-feira, 28 de março de 2019

LIVRO: "O Invisível"



LIVRO: “O Invisível”,
de Rui Lage
Edição | Guilherme Valente
Ed. Gradiva, Setembro de 2018


A leitura de “O Invisível” trouxe-me à memória “The Fearless Vampire Killers”, um filme de 1967 realizado por Roman Polanski e que, nos nossos cinemas, surgiu com o inenarrável título de “Por Favor Não Me Mordam O Pescoço”. Trata-se de uma deliciosa paródia, na qual o protagonista principal e o seu aprendiz partem para a Transilvânia com o objectivo de libertar uma aldeia assolada por uma praga de vampiros. Embora não sejam vampiros as entidades em causa no livro de Rui Lage, há toda uma série de pontos de contacto entre este e o filme, do misterioso e sobrenatural aos meios fechados dados ao obscurantismo, às mentalidades tacanhas dos aldeões ou à condução da investigação por alguém que “trata por tu” as forças do oculto.

Se gostei tanto do filme, a verdade é que não gostei menos do livro, sobretudo pelo fantástico que se assume numa escrita de enorme rigor literário, mas também pela abordagem bem-humorada das situações, por uma notável recriação de ambientes, pelo desfilar de códigos e sinais – do pentáculo de Salomão aos espelhos que não devolvem a imagem – e ainda por um certo retrato social do Portugal de início do século XX o qual, convenhamos, conserva ainda hoje os tiques de há cem anos atrás. Piscando o olho ao romance policial, “O Invisível” oferece-nos uma história delirante que nos irá levar à Cova do Sapo, pequena aldeia encravada nas serranias do Alvão, assolada por espíritos demoníacos capazes de pôr os cabelos em pé ao mais destemido. Decididos a esconjurar o mal, dois ocultistas deslocam-se da capital em socorro da pobre gente, mas cedo percebem estar perante um caso de fratura entre o mundo real e o mundo das trevas, o culto a deuses ancestrais e as práticas de bruxaria constituindo-se partes maiores de um todo complexo.

Mas há ainda uma particularidade neste imaginativo exercício de escrita, tão ou mais inesperada do que o próprio assunto do livro. É que “O Invisível” coloca Fernando Pessoa, “poeta d’Orpheu, futurista e tudo”, no centro da acção, elegendo-o como um dos dois ocultistas – o outro é Augusto Ferreira Gomes, seu sócio na Agência Bandarra – chamados a deslindar o caso. Rui Lage serve-se deste recurso para aflorar os anos passados por Pessoa em Durban, África do Sul, durante a infância e uma boa parte da juventude, aí se fundando o gosto pelo misticismo e pelas ciências ocultas. Com a liberdade que só a ficção pode conceder, o autor cruza o real e o aparente, introduzindo o leitor no vasto e dramático universo de identidades, máscaras, enigmas e reflexões, tão caro ao “poeta fingidor”. Quem não precisa de fingir que finge é Rui Lage, que nos conduz hábil e inteligentemente por estradas sinuosas, repletas de armadilhas e bifurcações, ao encontro de conceitos como verdade, existência e identidade.

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