LIVRO: “O Invisível”,
de Rui Lage
Edição | Guilherme Valente
Ed. Gradiva, Setembro de 2018
A leitura de “O Invisível”
trouxe-me à memória “The Fearless Vampire Killers”, um filme
de 1967 realizado por Roman Polanski e que, nos nossos cinemas,
surgiu com o inenarrável título de “Por Favor Não Me Mordam O
Pescoço”. Trata-se de uma deliciosa paródia, na qual o
protagonista principal e o seu aprendiz partem para a Transilvânia
com o objectivo de libertar uma aldeia assolada por uma praga de
vampiros. Embora não sejam vampiros as entidades em causa no livro
de Rui Lage, há toda uma série de pontos de contacto entre este e o
filme, do misterioso e sobrenatural aos meios fechados dados ao
obscurantismo, às mentalidades tacanhas dos aldeões ou à condução
da investigação por alguém que “trata por tu” as forças do
oculto.
Se gostei tanto do filme, a verdade é
que não gostei menos do livro, sobretudo pelo fantástico que se
assume numa escrita de enorme rigor literário, mas também pela
abordagem bem-humorada das situações, por uma notável recriação
de ambientes, pelo desfilar de códigos e sinais – do pentáculo de
Salomão aos espelhos que não devolvem a imagem – e ainda por um
certo retrato social do Portugal de início do século XX o qual,
convenhamos, conserva ainda hoje os tiques de há cem anos atrás. Piscando o
olho ao romance policial, “O Invisível” oferece-nos uma história
delirante que nos irá levar à Cova do Sapo, pequena aldeia
encravada nas serranias do Alvão, assolada por espíritos demoníacos
capazes de pôr os cabelos em pé ao mais destemido. Decididos a
esconjurar o mal, dois ocultistas deslocam-se da capital em socorro
da pobre gente, mas cedo percebem estar perante um caso de fratura
entre o mundo real e o mundo das trevas, o culto a deuses ancestrais
e as práticas de bruxaria constituindo-se partes maiores de um todo
complexo.
Mas há ainda uma particularidade neste
imaginativo exercício de escrita, tão ou mais inesperada do que o
próprio assunto do livro. É que “O Invisível” coloca Fernando
Pessoa, “poeta d’Orpheu, futurista e tudo”, no centro da acção,
elegendo-o como um dos dois ocultistas – o outro é Augusto
Ferreira Gomes, seu sócio na Agência Bandarra – chamados a
deslindar o caso. Rui Lage serve-se deste recurso para aflorar os
anos passados por Pessoa em Durban, África do Sul, durante a
infância e uma boa parte da juventude, aí se fundando o gosto pelo
misticismo e pelas ciências ocultas. Com a liberdade que só a
ficção pode conceder, o autor cruza o real e o aparente, introduzindo o leitor no vasto e dramático universo de identidades,
máscaras, enigmas e reflexões, tão caro ao “poeta fingidor”.
Quem não precisa de fingir que finge é Rui Lage, que nos conduz
hábil e inteligentemente por estradas sinuosas, repletas de
armadilhas e bifurcações, ao encontro de conceitos como verdade,
existência e identidade.
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