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quarta-feira, 17 de dezembro de 2025

LIVRO: "Amor e Outros Desencontros" | Olívia Clara Pena



LIVRO: “Amor e Outros Desencontros”,
de Olívia Clara Pena
Ed. Cordel D’ Prata, Abril 2024


“E se, sem cerimónia, me batesses à porta?
Selasses esta dor com o mel da tua boca
Teu cheiro ameno a Sol e maresia
E num abraço de luz das estepes me salvasses a vida.”

A escrita de Olívia Clara Pena nasce de uma contenção que não domestica o fogo: antes o concentra. Em “Amor e Outros Desencontros”, o amor não é ornamento nem promessa fácil, mas matéria viva, orgânica, que pulsa no corpo e no tempo. “O tempo corre veloz / E a vida é sempre certeira”, escreve a poeta, e nessa certeza sem apelo instala-se a lucidez afectiva que atravessa o livro. Cada poema parece saber que amar é sempre lidar com a iminência da perda, com a impermanência inscrita na pele. O tom íntimo, quase confessional, não cede ao excesso: prefere o corte preciso, o gesto mínimo, a palavra que fica a arder depois de dita. Há uma melancolia serena que percorre os versos, como um “alto mar e calmaria” nos olhos do outro, onde o eu poético mergulha com sede e consciência. Amar, aqui, é aceitar que o fulgor da presença convive com a falha, e que o corpo - território do desejo - é também lugar de finitude.

Neste livro, o corpo feminino afirma-se como sujeito pleno: corpo que deseja, que pensa, que escreve e recorda. Não é objecto passivo de amor ou dor, mas centro irradiador de experiência. “A poesia / está nos filhos que brotam no ventre / está no futuro ao raiar do dia” - e nesses versos percebe-se como a escrita de Olívia Clara Pena liga criação poética e criação de vida, numa ética profundamente feminina do sentir. O amor raramente surge como plenitude; é tentativa, busca, barco frágil que avança apesar do risco: “O amor é o barco que navega até ti”. Os desencontros são narrados sem dramatismo fácil, através de gestos mínimos - “pousei na mesa olhares que se tocam / pousei na mesa o coração partido” - onde a intimidade se revela nas falhas. Há coragem nesta vulnerabilidade assumida, uma recusa da vitimização e uma consciência madura de que a solidão também integra o amor vivido no mundo real.

A força do livro reside na forma como amor e desencontro se entrelaçam sem hierarquia. Aqui não há narrativas lineares nem redenções românticas: Há fragmentos, instantes, memórias que persistem no corpo como ausência sensível. “Hoje danço em teu corpo / hoje nasces num sorriso”, escreve a autora, sabendo que esse hoje é sempre precário. A escrita interroga cada sentimento, transformando-o em matéria poética, e encontra força precisamente na fractura entre desejo e realidade. Os desencontros não anulam o amor; revelam-no na sua complexidade. Amar é, muitas vezes, aceitar que “só vale a pena se é amor”, mesmo quando esse amor não coincide com o que se espera. É nessa tensão que o livro se afirma como exercício de verdade emocional, como gesto de coragem num tempo que tantas vezes anestesia o sentir.

Há, finalmente, uma dimensão de celebração e incêndio nesta escrita: um erotismo lúcido, afirmativo, onde o corpo feminino se diz sem pudor nem submissão. “Incêndio à solta / corpo nu”, escreve Olívia Clara Pena, e nesse incêndio há entrega e autonomia, vertigem e escolha. A boca do outro pode ser “o centro do mundo”, mas o eu poético não se perde — expande-se. Esta é uma escrita que reivindica o direito ao desejo, à ternura, à memória, sem abdicar da consciência crítica. Feminina não por oposição, mas por afirmação: porque faz do corpo um lugar de saber, da emoção um gesto político, da poesia um modo de existir inteiro. Em “Amor e Outros Desencontros”, ser mulher é escrever com o corpo aberto ao mundo, sabendo que amar é sempre risco e, ainda assim, escolher.

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