“Havia livros de arte em casa. Meu pai dava-me livros depois de ver que era isso que me interessava. Quando tinha 14 anos, comprou-me um livro sobre Dadá e Surrealismo. Era como um livro de histórias; simplesmente maravilhoso estar a ver aquelas ilustrações. Revelação, não posso dizer que fosse, pois para mim era exactamente como um conto de fadas. Não me deu surpresas. Eu estava habituada a imagens daquelas.”
Paula Rego
A exposição dedicada ao surrealismo na obra de Paula Rego parte de um pressuposto certeiro: Mais do que uma adesão programática a um movimento, o surrealismo foi para a artista um território natural, quase doméstico, onde a imaginação sempre falou mais alto do que qualquer academismo. Educada visualmente desde cedo e marcada pela revelação precoce de um livro sobre dadaísmo e surrealismo, oferecido pelo pai quando a artista tinha 14 anos, Rego reconheceu nessas imagens algo que não lhe era estranho, mas familiar, como se de um livro de contos de fadas se tratasse. Essa naturalidade perante o estranho, o disforme e o onírico atravessa o núcleo expositivo, que reúne pinturas, desenhos e gravuras, sobretudo das décadas de 1960 e 1970, período em que a artista procurava ainda uma identidade própria. A exposição sublinha, com pertinência, a importância da imaginação como motor do processo criativo, revelando obras em que o sonho comanda a composição e onde o jogo entre dissimulação e revelação cria imagens de inquietante magnetismo.
Um dos eixos mais bem explorados pela curadoria é o da metamorfose, conceito central na obra da artista e assumido por ela como metáfora do próprio acto de criar. Nas salas da Fundação Cupertino de Miranda, essa ideia manifesta-se através de figuras em constante mutação, corpos que oscilam entre o humano e o animal, personagens suspensas entre a infância e a violência simbólica do mundo adulto. O universo fantástico que emerge destas obras não é evasivo, mas profundamente ligado à experiência concreta do amor e do medo, do poder e da sedução, da obediência e da resistência, sentimentos entrelaçados numa iconografia onde nada é inocente. Os animais humanizados, recorrentes, funcionam tanto como agentes de encantamento como de ameaça, remetendo para um mundo carregado de tensão psicológica que ultrapassa os limites do consciente. Ao convocar o sonho como método e matéria, Paula Rego aproxima-se do surrealismo sem nunca abdicar da narrativa, da teatralidade e de uma relação crítica com a realidade. O resultado é uma obra onde o maravilhoso convive com o perturbador e onde a fantasia surge como matéria de revelação, nunca como instrumento de fuga.
Embora a exposição se apresente em forma de homenagem - particularmente significativa num ano em que Paula Rego, caso fosse viva, completaria 90 anos de idade -, o seu maior mérito reside em propor uma leitura menos cristalizada da artista. Aqui, o surrealismo não surge como rótulo, mas como fase fértil de experimentação, decisiva para a construção de uma linguagem visual única, que mais tarde se expandiria para outros territórios narrativos e políticos. Fica clara a forma como Paula Rego assimilou influências literárias, culturais e artísticas - de Lewis Carroll à tradição popular -, para criar um universo próprio, onde o corpo é lugar de conflito, a infância é memória activa e a autoridade nunca é estável. Ao privilegiar o encantamento, o enigma e a transformação, esta exposição convida o visitante a entrar num mundo onde as imagens não oferecem respostas fáceis, mas antes perguntas persistentes. E é precisamente nessa capacidade de inquietar, seduzir e desestabilizar que reside a atualidade e a força duradoura da obra de Paula Rego. Para ver só até 04 de Janeiro.
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