CINEMA: “De Bicicleta” / “À Bicyclette!”
Realização | Mathias Mlekuz
Argumento | Mathias Mlekuz, Philippe Rebbot
Fotografia | Florent Sabatier
Montagem | Céline Cloarec
Interpretação | Mathias Mlekuz, Philippe Rebbot, Josef Mlekuz, Adriane Grzadziel, Marziyeh Rezaei, Laurent Jouault, Romane Bohringer, Raoul Rebbot-Bohringer, Maya Latrobe, Manolo Mlekuz, Judith Mollard, Micheline Charles, Véronique Bobin, Christine Bonnet, Dominique Archambault, France Jacob, Jean Mollard, Marie-Jo Deforges, Jacques Grousset, Elisabeth Berst, Lou Berst, Suzanne Schmidt, Andreas Eme, Isabelle Edeline, Stéphanie Delmas, Rachid Aber
Produção | Jean-Louis Livi
França | 2024 | Comédia, Drama | 90 Minutos | Maiores de 12 Anos
UCI Arrábida 20 - Sala 3
22 Dez 2025 | seg | 13:40
Mathias Mlekuz parte para a estrada na companhia do amigo Philippe Rebbot, refazendo de bicicleta o percurso entre La Rochelle e Istambul que o seu filho Youri tinha realizado alguns anos antes. O gesto nasce de uma ausência devastadora: Youri morreu em 2022, deixando um vazio que o pai, com o apoio do seu melhor amigo, procurará preencher. Guiados por um álbum de fotografias e por apontamentos deixados pelo jovem, os dois homens impõem-se paragens “obrigatórias”, repetem enquadramentos e cruzam paisagens que funcionam como ecos de uma presença invisível. Youri surge menos como personagem do que como sinal, nome repetido, inicial reconhecida na natureza, figura quase mítica que acompanha o percurso. Marcadamente dramático, com toques de comédia, “De Bicicleta” evita deliberadamente a reconstituição biográfica ou a idealização do filho desaparecido, preferindo fazer da viagem um ritual de aproximação sensível, onde pedalar e falar se confundem num mesmo esforço de sobrevivência emocional.
Ao longo do trajecto, o filme assume-se como um “road movie” íntimo, marcado pela cumplicidade entre dois amigos de longa data. Philippe Rebbot funciona como contraponto essencial: escuta, relativiza, brinca, ajuda a conter a culpa corrosiva que atravessa o discurso de Mlekuz. O tom oscila entre a melancolia e a leveza, com momentos burlescos que inscrevem o filme numa tradição de duos de comédia dispostos a subverter as regras e constrangimentos que se vão atravessando no seu caminho. Cada encontro fortuito, cada conversa partilhada, reforça a ideia de que a vida persiste apesar da dor. A viagem torna-se assim um exercício de catarse, um espaço onde a vulnerabilidade é exposta sem grandiloquência, tornando-se numa aventura terapêutica e dando azo a um objecto cinematográfico delicado e emotivo.
É precisamente nessa dupla natureza que reside a maior ambiguidade — e também a fragilidade — do filme. “De Bicicleta” corre na fronteira entre documentário e ficção, propondo um pacto pouco explícito com o espectador. Embora se apresente como relato espontâneo, o dispositivo revela-se demasiado teatral: há cenas redundantes, diálogos recalcados, momentos claramente encenados para ganhar densidade narrativa. Essa consciência de artifício torna-se desconfortável, levantando a questão de saber até que ponto é possível ser simultaneamente sujeito de uma experiência de enorme violência emocional e actor da sua própria dor. Mlekuz aposta num registo lúdico, tempera o luto com auto-ironia, mas deixa zonas de sombra, ausências significativas, silêncios que não são interrogados, que mantêm Youri envolto numa aura de mistério. Sem oferecer respostas nem pretender apaziguar, o filme propõe uma travessia onde o cinema surge como tentativa, imperfeita mas sincera, de continuar a pedalar quando o sentido da viagem parece ter-se perdido.
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