As Tertúlias Literárias “Conversas às 5” regressaram ao Centro de Reabilitação do Norte para a sua 26.ª sessão. À semelhança das anteriores iniciativas, o momento foi de comunhão e partilha à volta dos livros, abrindo a possibilidade de ampliar o processo de reabilitação dos doentes do Centro, expandindo-o ao universo colorido da literatura, à força das palavras, às viagens feitas de sonho e magia e, ao mesmo tempo, alertando para a importância dos livros nas nossas vidas. Convidada especial de um momento sempre especial, Sara Duarte Brandão trouxe consigo a sua enorme juventude e energia, a paixão pela vida e pela escrita, a promessa de um futuro que se espera melhor para todos. Um futuro feito de empatia, cumplicidade e dádiva. “Quem tem Medo dos Santos da Casa”, romance vencedor do Prémio Literário Cidade de Almada 2023 e editado no passado mês de Marco com a chancela das Publicações Dom Quixote é o reflexo do espírito determinado e livre da autora, sendo o grande responsável pelo preenchimento do espaço da tertúlia, trazendo consigo as muitas camadas de que se reveste, das esculturas religiosas de Altino Maia às relações intergeracionais, dos valores da liberdade e da justiça à força de ser mulher.
“Um dos deveres do escritor e de quem se move no universo dos livros é levar a literatura a todo o lado”, referiu Sara Duarte Brandão, depois de afirmar a sua enorme emoção e alegria por poder falar da sua obra para um público muito particular e num lugar tão especial. Nascida no Porto, a convidada viveu praticamente toda a sua vida em Vilar do Paraíso, relativamente perto do Centro de Reabilitação do Norte. Designer de comunicação, com mestrado em Literatura, está actualmente a fazer o doutoramento em Ciências da Educação e a trabalhar com crianças e jovens cujos pais se encontram privados de liberdade e institucionalizados em estabelecimentos prisionais. Num contexto global mostra-se uma defensora acérrima da “educação pela arte e do seu impacto na vida de diferentes grupos e de diferentes pessoas”. Apresentando-se aos presentes, Sara Duarte Brandão falou da sua actividade como escritora, mas também como leitora: “Escrevo muito, mas leio muito mais”, disse. “Aprendi a andar de bicicleta aqui em frente, embora já não saiba andar de bicicleta”, lembrou, ao mesmo tempo reafirmando o carinho que tem por toda esta muito bela faixa litoral e que, seguindo para norte, encontra a foz do rio Douro e, na sua margem esquerda, a comunidade da Afurada, com o seu viver entre o rio e o mar, a sua identidade muito vincada, os estendais de roupa comunitários, as festas a S. Pedro e… os “santos da casa”.
Integrar uma equipa de alunos de Mestrado em História da Arte, Património e Cultura Visual da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, na altura a trabalhar na Afurada, foi o despertar para a escrita de “Quem Tem Medo dos Santos da Casa”, um livro que tem na sua génese a obra do escultor Altino Maia (1911-1988) e dos Santos da Afurada, revelados ao mundo aquando da inauguração, em 1955, da Igreja Paroquial de S. Pedro da Afurada. A História fala-nos da apoteótica viagem das imagens até à Afurada, num grandioso cortejo de barcos, mas fala-nos também da sua rejeição por parte da comunidade, ao não reconhecer nelas uma ligação devocional. Apeadas e enclausuradas em armários da sacristia após a saída do Padre Joaquim, o defensor e protector destas esculturas durante quatro décadas, as peças foram resgatadas no âmbito deste trabalho de mestrado e mostradas ao público no Centro Interpretativo do Património da Afurada, em exposição inaugurada no dia 04 de Julho de 2020. “Como é que pessoas tão devotas a um determinado Santo se sentem no direito de humilhar e destruir a sua figura”, foi a questão que mais inquietou a escritora e que a levou a comparar o percurso das imagens ao da mulher, “em especial em Portugal, ao longo do tempo”. Juntar à história dos Santos da Afurada a figura de todas as mulheres, vítimas de discriminação e de isolamento ao longo dos tempos, ergueu-se com a força iniludível das causas maiores. Daí à escrita do romance foi uma questão de (pouco) tempo e (muita) garra.
Em velocidade de cruzeiro, a conversa segue agora na senda dos detalhes. A paixão pela arte têxtil e a ligação destes lavores à figura da mulher levou a que a escritora trouxesse essa imagética para o livro, colocando Maria Teresa, a protagonista, na figura de alguém que tece e se serve da memória para recuperar as imagens dos santos e fazer deles tema dos nove tapetes que se propôs fazer. O próprio nome da protagonista, Maria Teresa, é uma homenagem à coragem, à determinação e ao valor e significado da obra de Maria Teresa Horta. Outrora encerrados no escritório do avô, os livros que povoam a casa de Maria Teresa e que, aos poucos, acabaram por se transformar em territórios de liberdade, são uma memória ligada à importância dos avós na educação e na formação dos netos. A pouca abertura do Estado Novo a novas tendências ou correntes estéticas levou a que o próprio Altina Maia fosse visto como alguém exterior aos princípios e valores culturais do regime e caísse em descrédito, acabando por morrer na miséria. Camada após camada - a mulher, a comunidade, as gerações, os santos, o regime -, o livro vai-se “construindo” na mente dos presentes, graças às palavras de Sara Duarte Brandão: Vivas, ricas, inspiradoras.
“A minha filha é Sara e eu sou Teresa. Estive para não vir hoje, porque não estava muito bem disposta. Estou muito feliz por ter decidido vir. Muito obrigado”. Este testemunho tão cheio de luz abriu a conversa ao público presente, com o diálogo a ampliar-se graças às várias questões colocadas. Os santos de Altino Maia acabaram por se constituir no grande motivo de conversa e fonte, até, de alguma controvérsia. As questões socio-culturais ou o papel da arte enquanto figuração do real estiveram em debate, com o moderador a lembrar que “vivemos tempos muito conturbados e percebemos que as diferenças estão a afastar-nos uns dos outros, a servirem de pretexto a que muros se ergam à nossa volta e nos isolem cada vez mais, ao invés de nos aproximarem, já que é na diferença que encontramos a nossa diversidade e nos afirmamos enquanto comunidade e humanidade”. Se, como diz o povo, “santos da casa não fazem milagres”, este livro é um lançar da semente no coração dos leitores, das quais, diz a convidada, “umas brotam e outras não”. E acrescenta: “Aqui reside o milagre da literatura”. A conversa encerrou com o (hipotético) gesto furtivo de alguém que, munido de um balde de tinta e de um pincel grosso, escreve uma frase numa das paredes da Afurada, na certeza de que resistirá ao vento e ao sal. Esse alguém é Sara Duarte Brandão e a frase é “roubada” a Clarice Lispector: “Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome.” Um maravilhoso final de uma tarde perfeita.
obrigada Margarido!
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