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segunda-feira, 27 de outubro de 2025

TEATRO: "Welcome to Europe"



TEATRO: “Welcome to Europe”
Texto, encenação, espaço cénico e vídeo | Ricardo Correia 
Apoio ao movimento e figurinos | Rita Grade
Direção técnica e desenho de luz | Diogo Marques
Fotografia | Carlos Gomes 
Design | Joana Corker
Cabeleireiro | Ilídio Design by Carlos Gago
Interpretação | Beatriz Antunes, Fábio Saraiva, Sofia Coelho e Ricardo Correia
Produção | Casa da Esquina – Associação Cultural
70 Minutos | Maiores de 16 Anos
FESTOVAR 2025 - XXXII Festival de Teatro de Ovar
Centro de Artes de Ovar
25 Out 2025 | sab | 17:30


Transformado no novíssimo Museu Welcome to Europe” o Centro de Artes de Ovar abre alguns dos seus espaços aos visitantes (leia-se “espectadores”), ávidos de mergulhar numa Europa em estado avançado de decomposição. Enquanto se aguarda pelo início da peça, escutam-se as entrevistas a quatro mulheres que deixaram os seus países para trás e encontraram em Ovar um porto de abrigo seguro e tranquilo. São histórias de vida sofridas, mas que têm na integração plena e na gratidão pelas oportunidades oferecidas um contraponto luminoso. Mas passar-se-á o mesmo com todos os migrantes? Os refugiados entregues às autoridades por um caçador de troféus, em missões conduzidas com zelo, poderão dizer o mesmo?  Esse mesmo caçador de troféus que se vangloria das suas façanhas e nos conta os pormenores da caçada, antes de ser convidado a assumir o papel do outro, o medo nos olhos e um charco de urina aos pés, agora o seu próprio medo, a sua própria urina. Sim, trocar de lugar com o outro, calçar os sapatos do outro, assume-se como ponto de partida de um espectáculo que encerra dilemas, dúvidas, inquietações e muitas interrogações. Qual o papel da Arte enquanto a Europa e o Mundo ardem? Como é que se narra a dor, a nossa e a dos outros? Como é que se lida com a ascensão dos novos fascismos? Como é que se segue em frente sem cometer os mesmos erros do passado? Tantas perguntas para uma ficção teatral. Está inaugurado o Museu Welcome to Europe. Sejam bem-vindos.

Desenhado como se de uma visita guiada se tratasse, o espectáculo permite, através de diferentes performances em lugares improváveis, questionar a construção da identidade individual e colectiva numa Europa em processo de desagregação. Nela, o público é desafiado a atravessar salas de memória, identidade e política, questionando o que significa, hoje, ser europeu. É isso que acontece na primeira sala, um jogo entre o sim e o não, com a Europa em pano de fundo. Neste apurar “de que lado está” o espectador, percebe-se quão poucos são aqueles que se mostram satisfeitos com a situação económica do país ou que acham que os jovens de hoje terão uma vida melhor do que a geração anterior. Em contrapartida, a grande maioria já se sentiu insegura ou discriminada no nosso país ou já pensou em emigrar. Cinco anos após a morte de Aylam Kurdi, “Coro dos Defuntos”, a segunda sala deste Museu, recorda o drama daqueles que, numa tentativa desesperada de chegar à Europa, perecem no Mediterrâneo. Já no subpalco do Centro de Artes de Ovar, o espectador é convidado a assistir à conferência “27 europeus que me dão instintos assassinos” e a reflectir sobre a memória e a identidade europeia. Através dela, Ricardo Correia mostra as tensões latentes com o projecto europeu, o sítio da raiva e dos discursos de ódio como uma expressão para ampliar os desejos individuais. Do responsável pela introdução da flauta de bisel na escola à austeridade da troika, do inventor do programa Erasmus a William Shakespeare, eis uma visão cínica de figuras inenarráveis, no que pode ser visto como uma autópsia à União Europeia e uma forma de utilizar o ódio como catarse nesta tragédia que estamos a viver.

A visita guiada termina na caixa de palco, última sala deste Museu. Mais do que em qualquer outro espaço, é aí que se revelam, de forma nítida, as contradições do mundo globalizado, graças a uma peça de teatro “convencional”. O cenário é sombrio e nele se cruzam um europeu que, partindo da Grécia, atravessa o Mar Egeu num cruzeiro para celebrar a lua de mel com a sua mulher, e uma refugiada que parte da Turquia e atravessa o mesmo Mar Egeu num bote, em sentido contrário, na tentativa de escapar à guerra com o seu recém-marido. Muito breve, a peça é preciosa no que encerra de mensagem - um daqueles murros no estômago cuja dor não se apaga -, mas também pela forma como o texto está construído, fundindo as personagens num convite a “visitar” o absurdo da nossa existência - portentosos os desempenhos de Fábio Saraiva e Sofia Coelho. Neste Museu feito de peças efémeras, no final não haverá “merchandising” ou“souvenirs” à venda - quando muito, os interessados podem adquirir o livro do espectáculo -, mas as interrogações persistem muito para lá dos 70 minutos de duração da peça. “Welcome to Europe” confronta-nos com uma Europa excludente, com a redução dos migrantes a meros números, ameaças latentes, corpos sem história cujas histórias têm no risco, na desumanização ou na perda denominadores comuns. Neles, porém, reconhecemos uma força vital que desafia a indiferença e expõe a fragilidade de um sistema que, enquanto proclama os direitos humanos, nega a humanidade a quem os reclama. Que Europa é esta que recebe e exclui, que promete e recusa, que soube construir-se no encontro com o outro e que agora o rejeita?

[Foto: Ovar / Cultura | https://www.facebook.com/ovarcultura]

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