Embora o acordeão seja raramente associado ao jazz tradicional, são relativamente poucos os músicos que souberam explorar-lhe o potencial expressivo e rítmico, transformando-o em instrumento de primeiro plano de forma inovadora. Entre os nomes mais emblemáticos destacam-se Richard Galliano, francês que reinventou o “musette” ao fundi-lo com o jazz moderno, criando uma linguagem de improvisação que combina lirismo melódico e sofisticação harmónica; Art Van Damme, pioneiro norte-americano que, desde os anos 40, demonstrou a capacidade do acordeão para dialogar com guitarras e contrabaixos num swing fluido; Toots Thielemans, que antes de se consagrar na harmónica explorou também o acordeão com sensibilidade jazzística; e Vincent Peirani, representante contemporâneo de uma geração que desafia fronteiras estilísticas, cruzando jazz, música de câmara e influências mediterrânicas. A eles junta-se, em lugar de destaque, João Barradas, reconhecido como um dos mais destacados acordeonistas europeus da actualidade, um músico capaz de se mover com fluidez entre a música clássica e a improvisação, e de mostrar, como poucos, a dimensão poética do acordeão e a sua capacidade de expandir o léxico do jazz.
Na recta final do FIMUV - Festival Internacional de Música de Paços de Brandão, este ano a despedir-se do público na que foi a sua 48.ª edição, João Barradas subiu ao palco do (pouco preenchido) Auditório da Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira para um grande momento de jazz. Na companhia do contrabaixista André Rosinha e do baterista Bruno Pedroso, o músico fez incidir o alinhamento do concerto no álbum “Aperture”, projecto discográfico editado em Junho deste ano e que resultou de uma residência artística na Casa da Música, no Porto, durante a temporada passada. Baseando a linguagem composicional nas ideias de espaço, liberdade e arquitectura, Barradas pôs em palco toda a sua qualidade e virtuosismo, dando a perceber, nas suas mais variadas dimensões, a versatilidade tímbrica de um instrumento capaz de combinar a função harmónica de um piano, a expressividade de um saxofone e a mobilidade melódica de uma guitarra. Para o público tornou-se fascinante ver como Barradas controla o fole, como preenche o fraseado graças às mais variadas nuances dinâmicas e respiratórias, como acrescenta a sua própria voz com a ajuda do vocoder e como se mostra capaz de oferecer um conjunto tão hegemónico de composições, ao mesmo tempo densas e leves, comprometidas e livres.
“Airam” abriu o concerto em alta, com as notas sincopadas do contrabaixo e as batidas rítmicas da bateria a oferecerem ao acordeão espaço para brilhar. Em ambiente de enorme intimidade, João Barradas ancorou nas amplas possibilidades de contraponto e de texturas do instrumento uma música desenhada a régua e esquadro, mas paradoxalmente maleável, desenvolvida numa base de inteligência e sofisticação, capaz de arrastar o público numa onda de sedução e fascínio. “Escher’s Song” reforçou a vertente cerebral da música de Barradas - enorme a prestação de Rosinha no contrabaixo -, que “Escada”, “Glass” ou “Cube” ajudaram a consolidar. Num alinhamento quase integralmente dominado, como referi, pelo trabalho “Aperture”, a excepção foi “Señor Cáscara”, uma sentida e muito oportuna homenagem a Bernardo Sassetti. Até ao final a surpresa foi a nota dominante, as músicas a irromperem num crescendo de lirismo e harmonia, as viagens pelas mais inesperadas paragens a sucederem-se para gozo e gáudio do público. Foi assim com “Indigo”, “Rue Faider” e “Casa”, como foi assim com “PNEuma”, composição de Yannis Kyriakides que pôs fim ao concerto. Um enorme momento de jazz, um dos mais inspiradores e galvanizantes num ano que caminha rapidamente para o final.
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