“Na Pele da Terra” começou por ser um projecto apresentado por Mário Barreiros à Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Música – Interpretação Artística, especialização Bateria Jazz. O projecto trazia consigo a ideia de combinar um trio de jazz com processamento electrónico por computador, abrindo espaço a que os músicos controlassem os efeitos e as alterações sonoras durante a performance, apoiando-se na dinâmica transformadora da tecnologia nesse fascinante diálogo entre o orgânico e o digital. “Isso gera uma dinâmica única e imprevisível, desafiando a ideia tradicional de que o jazz é puramente baseado na espontaneidade humana”, referia, a propósito, Mário Barreiros. Graças à electrónica, efeitos como delay, modulação, sampling e distorção tímbrica são passíveis de serem manipulados em tempo real, transformando os sons tradicionais do jazz em paisagens sonoras complexas e camadas texturais que transcendem os limites dos instrumentos acústicos convencionais. Em última análise, a música para trio de jazz com processamento electrónico representaria uma jornada de exploração musical onde o passado encontra o futuro. Uma abordagem disposta a desafiar as convenções, abrindo portas para a criatividade ilimitada e a descoberta sonora.
Foi com esta disposição que Mário Barreiros se apresentou ao público de Estarreja, na noite inaugural do EstarreJazz 2025. Em palco, ao seu lado, Ricardo Toscano (saxofone alto) e Carlos Barreto (contrabaixo) assumiram a parte instrumental, enquanto Leonardo Pinto assinou o desenho de som e Nélson Carvalho tratou da sua distribuição espacial - de forma magistral, diga-se. Ao unir a riqueza da tradição do jazz com as possibilidades da tecnologia moderna, os músicos poderam criar uma música enraizada na história e, ao mesmo tempo, verdadeiramente contemporânea. Mas “Na Pele da Terra” foi além deste lado, digamos, experimental (nos anos 1970, já Miles Davis se apoiava na electrónica para desenhar o seu jazz vanguardista). Delicada e elegante, a música contida no projecto é também uma pequena reflexão sobre a frágil e microscópica dimensão daquilo a que chamamos “vida na Terra” quando comparada com a imensidão do Cosmos. A sensação de humildade diante da vastidão do Universo, pode inspirar uma apreciação mais profunda da beleza e da fragilidade da vida na Terra e, nessa medida, “Na Pele da Terra” é um manifesto sobre a responsabilidade, individual e colectiva, que temos no actual estado de pré-colapso do nosso ecossistema e uma homenagem a todos os que participam na preservação do nosso habitat.
Socorro-me da Folha de Sala (um verdadeiro luxo nos tempos que correm) para dar nota do alinhamento de um concerto breve no tempo, mas de alta intensidade, contagiando de emoção e energia um público entusiasta. “O Solo”, composição de Mário Barreiros, abriu o concerto a olhar as árvores e a terra, o que cresce e permanece, oferecendo aos presentes uma experiência sensorial única. Barreiros, Barreto e Toscano punham em prática o seu enorme virtuosismo, mas era na electrónica que o ouvido se apurava, no que reverberava e amplificava de dimensão acústica. Dedicada a todos os que de alguma forma contribuem para uma reconciliação entre a humanidade e a natureza, atitude de importância crucial para o futuro do nosso ecossistema, “One Billion Trees”, de Mário Barreiros, foi um grande momento de jazz, assente na enorme capacidade de improvisação de Ricardo Toscano e Carlos Barreto. “Fall”, de Wayne Shorter, surge como uma meditação sobre a passagem do tempo - o Outono como metáfora da maturidade artística e humana, oferecido em harmonias amplas e movimentos introspectivos, num convite à contemplação do tempo e da existência.
A segunda metade do concerto abriria com “Goal 14”, uma composição assinada conjuntamente por Mário Barreiros e Ricardo Toscano. Apelando à protecção dos ecossistemas marinhos, ao combate à poluição e à sobrepesca, o tema tem como ponto de partida uma improvisação de saxofone alto, pontuado por arcadas de contrabaixo, e processamento electrónico por computador em tempo real. Mário Barreiros compôs “Sol” (fantástica a imagem projectada na tela), balada inspiradíssima que homenageia o coração luminoso que faz pulsar o planeta e que mereceu do público a mais prolongada e entusiástica ovação da noite. John Coltrane não podia faltar no serão de Estarreja e “Naima” foi mais um momento alto do concerto, uma balada pontuada por uma sequência de acordes suspensos capazes de criar uma atmosfera etérea e meditativa. “Na Pele da Terra”, de Leonardo Pinto, encerrou da melhor forma o momento inaugural do EstarreJazz, fazendo assentar a música na crosta terrestre, o verdadeiro palco da vida, a “pele” que sustenta e transforma tudo o que existe à sua margem. O solo inicial do contrabaixo é precioso, como preciosos são os diálogos que virá a estabelecer com o saxofone e a bateria, sob as boas graças - ainda e sempre - da electrónica. Um concerto memorável.
Senhor Joaquim Margarido, agradeço profundamente ter-me identificado neste texto precioso. Precioso pela sua qualidade e também precioso, porque me ajudou a completar o encantamento que o concerto provocou em mim, graças ao seu conteúdo que revela um trabalho de pesquisa e um conhecimento que colmatou a minha ignorância jazzística, que assumo.
ResponderEliminarApreciei profundamente as projeções que acompanharam de forma maravilhosamente enriquecedora o concerto e, como refere, o luxo da folha de sala.
Foi, de facto, um concerto incontornável e imperdível, uma peça de arte, um ato de amor ou a sua metáfora.