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terça-feira, 28 de outubro de 2025

CONCERTO: A garota não



CONCERTO: A garota não
Com | Cátia Mazari Oliveira (guitarra e voz), Sérgio Miendez (guitarra e baixo), João Mota (teclados, guitarra, baixo e voz) e Diogo Arranja Sousa (bateria)
Centro Cultural de Paredes
25 Out 2025 | Sab | 21:30

“Seja gentil a nossa viagem. E cheia de flores.” Foi com este desejo que Cátia Mazari Oliveira se despediu do público em Paredes, no concerto que assinalou o primeiro aniversário de um equipamento belíssimo, espaçoso, confortável e com uma programação cuidada e marcada pelo ecletismo. Um desejo que encerra um silencioso abraço às coisas simples e delicadas, a lembrar que o gesto é mais precioso que a pressa, que a jornada é sempre mais importante que o destino. Levado numa viagem ao fundo de si, o público sentiu-se convidado a seguir em leveza um caminho de liberdade, um caminho povoado de flores, não apenas as que se ofereceram para serem colhidas, mas aquelas que brotaram do olhar, do encontro, da palavra dita com cuidado. Ou com raiva. Na companhia de Sérgio Miendez (guitarra e baixo), João Mota (teclados, guitarra, baixo e voz) e Diogo Arranja Sousa (bateria), A garota não mostrou-se igual a si própria, assertiva e oportuna, sem papas na língua, a voz erguida na defesa intransigente da justiça e da igualdade que nos deve unir a todos, a cantiga como arma eficaz na denúncia dos que querem pôr fim aos valores da liberdade e da democracia.

A apresentar “Ferry Gold”, o seu mais recente trabalho discográfico, A garota não tornou a bater na tecla da música de intervenção com uma frescura e vivacidade como há muito se não via, o que faz do seu projecto um dos mais emotivos, inspirados e inspiradores da nova música portuguesa. Marcado pela consciência social, pela recusa da complacência e pela denúncia da injustiça, desigualdade e discriminação, o seu trabalho é fruto de uma trajectória pessoal, de quem viveu a precariedade nas mais diversas formas e teve de ser fazer à vida com “uma força a crescer-lhe nos dedos e uma raiva a nascer-lhe nos dentes”. É isso que desvia o seu discurso artístico do mero lirismo e faz dela uma voz credível na luta por mais igualdade e por uma verdadeira democracia, livre de populismos e resguardos complacentes para o fascismo e a opressão. Em poemas que são verdadeiros manifestos, a cantora alerta para as rupturas invisíveis da nossa sociedade, a crescente disparidade entre ricos e pobres, a falha crónica nas respostas à saúde e habitação, as fronteiras erguidas contra os migrantes, a secundarização da arte e da educação — e defende a troca simbólica de “escolas por praças de touros” como metáfora do que se escolhe permitir ou ignorar.

Dividido em blocos temáticos, o concerto, tal como o disco, abriu com “A casa de Bernarda Alba” e “Este país não é para mães”, dando o mote a um conjunto de temas que tiveram na afirmação, no acolhimento e no reconhecimento dos mais frágeis e silenciados denominadores comuns. Na força das suas palavras há toda uma agenda ética que rejeita a estigmatização do outro, a ascensão de narrativas excludentes, o cercear da liberdade. A poesia de Irene Lisboa, Mariana Angélica de Andrade, José Carlos Barros, Luís Filipe Parrado ou Fausto Bordalo Dias passearam-se por esta hora e meia de concerto, bem como alguns temas dos discos anteriores, “Rua das Marimbas” e “2 de Abril”, a lembrar que não é de agora a intenção de transformar cada música não numa espécie de fuga, antes num cerrar de fileiras para que todos possam ver e sentir, recusar a inércia e agir. “Ferry Gold”, tema que dá nome ao álbum, teve o condão de encerrar o concerto, ainda e sempre o dedo enterrado na ferida, desta vez na denúncia das praias paradisíacas da península de Tróia, outrora públicas e que se foram transformando em espaços privatizados, os imóveis luxuosos de uns poucos a avançar sobre a liberdade de todos, em nome de “descobertas turísticas” que são, na realidade, expulsões silenciosas. Força Cátia, nós seremos a muralha de aço.

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