Páginas

quarta-feira, 1 de outubro de 2025

CONCERTO: "Canções para Beber com Pessoa" | Ana Deus e Luca Argel



CONCERTO: “Canções para Beber com Pessoa”,
de Ana Deus e Luca Argel
XI Festival Literário de Ovar
Escola de Artes e Ofícios
18 Set 2025 | qui | 22:30


Fernando Pessoa fez-se forte presença no Festival Literário de Ovar na música e na voz de Ana Deus e Luca Argel. Intitulado “Canções para Beber com Pessoa”, o concerto da dupla fechou o serão do segundo dia do certame, dando a ver uma das facetas menos conhecidas, mas não menos importantes, do poeta, ensaísta, dramaturgo, inventor, crítico literário e publicitário: a de tradutor. Desde a Pérsia do século XI, os “Rubaiyat” do poeta Omar Khayyam atravessaram quase um milénio de tempo e de linguagem até chegarem às mãos de Fernando Pessoa, pela recriação inglesa de Edward FitzGerald. Mais do que uma simples tradução, o encontro de Pessoa com os “Rubaiyat” transformou-se numa experiência literária e sensorial, um jogo livre de reinterpretação onde o vinho, a dúvida e o deslumbramento se entrelaçam numa contemplação do mundo que tanto revela a sua beleza efémera como se abre num abismo ontológico, onde nem mesmo Deus parece alcançar razão. Um século depois, estes poemas ressurgem reinventados pelas vozes de Ana Deus e Luca Argel, mergulhando nos delírios filosóficos e hedonistas do poeta e vestindo-os com uma roupagem contemporânea, onde palavra, som e silêncio se entrelaçam numa nova forma de escuta e celebração.

Não é a primeira vez que Ana Deus e Luca Argel investem o seu talento na obra pessoana. Versos, estrofes e toda uma panóplia de histórias de Fernando Pessoa ganharam uma nova vida no álbum “Ruído Vário”, a convite da Casa Fernando Pessoa, editado em 2017. Poemas bem conhecidos como “Liberdade”, “Na Ribeira Deste Rio”, “Entre o Sono e o Sonho” ou “Ó Sino da Minha Aldeia” ganharam assim uma nova dimensão, ampliando e colorindo a obra daquele que é amplamente considerado como um dos maiores poetas portugueses do Século XX. Regressar a Pessoa foi quase uma “obrigação” para a dupla, fascinada com o trabalho de tradução livre do poeta sobre os “Rubaiyat”, considerado o livro que contém mais notas manuscritas por Pessoa, em toda a sua biblioteca particular. No pequeno palco da Escola de Artes e Ofícios, em formato intimista (duas vozes e uma guitarra), a intensidade e presença cristalina da voz de Ana Deus juntou-se à delicadeza e doçura, já bem conhecidas, da interpretação de Luca Argel, convidando o público a saborear quinze canções praticamente inéditas, nas quais as palavras de Fernando Pessoa foram servidas em pequenas doses refrescantes.

Tema inaugural do concerto, “O Som das Águas” serviu de aperitivo a uma noite de sedução e encanto. As canções seguintes - “É Inútil Dizer”, “Ouvi os Sábios” e “O Grande Espaço Azul” - pareceram querer dizer: Bebe! Bebe! Um beber que, nas palavras e na música de Ana Deus e Luca Argel, se traduz em alegria, tranquilidade e amor. Na dolência de uma valsa ou no frenesim de um samba, é o carácter hedonista, contemplativo e profundamente filosófico do poeta persa que se revela, passando á prática essa ideia fundamental de aproveitar o presente, “pois o tempo é breve e a morte é certa”. “Fingi quem Fui”, “Endoidecendo”, “Melancolia” e “Não Fiz Nada” falam-nos mais de Pessoa que de Khayyam, tal como “Autopsicografia”, interpretado já no “encore” - “O poeta é um fingidor / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente”. Desenhado com cuidado e bom gosto, o concerto oferece um conjunto de registos em vídeo que evocam a ideia de centriptismo, que atrai o público para o seu interior e o convida a pede que se deixe seduzir pela doce libação das palavras e da voz. Uma experiência sensorial deveras inebriante, que a todos tocou.

Sem comentários:

Enviar um comentário