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segunda-feira, 1 de setembro de 2025

LIVRO: "Querida Tia" | Valérie Perrin



LIVRO: “Querida Tia”,
de Valérie Perrin
Título original: “Tata” (© Éditions Albin Michel, Paris, 2024)
Tradução | Maria de Fátima Carmo, Maria Ferro
Ed. Editorial Presença, Novembro de 2024 (4.ª edição, Janeiro de 2025)


“Comecei a trabalhar em 1974, estava Giscard no poder. Podia escrever as minhas memórias, mas isso iria irritar toda a gente e, sobretudo, ninguém acreditaria em mim. O que te quero dizer é que aquilo que me deixou incomodado nesse dia foi a mulher que estava deitada na cama ser a Colette. E o duplo dela fitava-me, de pé ao meu lado, com um olhar inexpressivo. Tive de me sentar para não cair redondo. O que nunca me tinha acontecido. Passados uns momentos, a única coisa que consegui dizer à tua tia foi: 'Explica-me'. Ao que ele respondeu: 'Não há nada a explicar. Morri esta noite, nesta cama. O Louis tratará do meu funeral.' E depois ela abeirou-se da defunta, beijou-a com ternura e murmurou-lhe: 'Tudo se vai resolver. Não te preocupes.' 

Quarto romance de Valérie Perrin, “Querida Tia” confirma o talento da autora para desenvolver narrativas em torno das relações familiares, vestindo-as de inquietação, surpresa, entusiasmo, ternura e divertimento. A trama gira em torno de Agnès, uma bem sucedida realizadora de cinema, que recebe a notícia de que a sua tia Colette, enterrada há três anos em Gueugnon, acaba de falecer. Intrigada, regressa à pequena cidade da Borgonha onde passou a infância, disposta a descobrir a verdadeira identidade daquela que se encontra enterrada no lugar da tia e perceber o porquê desta mulher solteira, discreta, proprietária de uma sapataria e adepta fervorosa do clube local de futebol, ter feito questão de se manter incógnita durante tanto tempo. A descoberta de uma mala cheia de cassetes abre uma janela sobre o passado, revelando segredos, intrigas e uma vida escondida. Graças a elas, Agnès irá reconstruir a sua história, recuperando temas como o abandono ou a adopção, os laços familiares ou o poder da amizade.

Um pai e marido violento, um treinador de futebol abusador ou a tragédia que envolveu a perseguição aos judeus durante a Segunda Guerra Mundial são pivôs de um enredo onde realidade e ficção se combinam de forma sensível e envolvente. A escrita recorre a uma “montagem” na qual personagens e episódios do passado, trechos dos filmes de Agnès ou as longas horas de gravações de Colette se entrelaçam. A repetitividade da estratégia narrativa irá afectar de forma irremediável a fluidez do romance. À beira do fim, acontece aquilo que se esperava, o verdadeiro golpe de asa do livro a não passar de uma queda desamparada, levando o leitor a não dar por totalmente bem empregue o tempo investido nas mais de quinhentas páginas que compõem o livro. E, no entanto, o brilho da personagem de Colette perdura com uma força extraordinária, dando nota de uma mulher lutadora, sacrificada, humilde e generosa, que tudo fez em prol da felicidade dos outros.

No seu todo, “Querida Tia” combina mistério, drama familiar e factos históricos, permeados de forma subtil com referências à música e ao cinema. Valérie Perrin faz uso da sua habilidade como contadora de histórias para dar voz a personagens muitas vezes invisíveis, iluminando vidas marcadas pelo silêncio e pelo esquecimento. Entre as linhas, discute-se a solidão, a infância ferida e os vínculos do coração que transcendem o sangue, num romance que, apesar das suas fragilidades, tem para oferecer momentos de leitura cativantes e comoventes. A escrita sensível e humana da autora consegue envolver o leitor, fazendo com que, mesmo diante dos tropeções narrativos, o prazer da leitura prevaleça. Para os incondicionais de Perrin, o livro terá o condão de frustrar, de certo modo, as expectativas, mas sem a força suficiente para os afastar de um legado onde predomina, ainda e sempre, “A Breve Vida das Flores”.

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