“O passado e o futuro são meras construções do presente: Muitas vezes ficamos presos ao que nunca existiu ou ao que acreditamos que se perdeu para sempre. Mas viver é aprender a conjugar os tempos. Os santos que se exibiam nesta igreja contavam uma narrativa que se aliava ao sofrimento que aquela vila já padecera. Eram um retrato de dor cravado em esperança, nunca a procura da desordem que atearam.”
Há uma névoa que sobe do rio, um murmúrio de vento que parece arrastar consigo preces antigas, uma casa ao pé da qual todos evitam passar. É neste ambiente sombrio que vamos encontrar Maria Teresa, a “louca”, a “bruxa” da Afurada. Entre o rigor das paredes familiares e a inquietação doce dos livros ao colo do avô, a sua juventude foi um tempo de descoberta — de um amor secreto, da vontade de não se deixar calar, de uma voz que pedia quem a escutasse. Porém, foram as mãos dos homens — de um pai austero em nome da fé, de um marido prepotente em nome do dever — que tentaram esculpir nela uma estátua muda, feita à imagem de promessas, na procura de a juntar ao rol imenso de mulheres que, separadas do seu mundo, se viram obrigadas a caber em moldes que não lhes serviam. Maria Teresa não se deixou imolar no altar do sacrifício. Um dia atravessou o rio e, nesse gesto simples, quase bíblico, rompeu com o preconceito. Abandonou uma vida de clausura e escolheu a margem onde o barro da vida prometia ser mais denso. Mas também mais livre, mais seu.
Ao ler “Quem Tem Medo dos Santos da Casa”, percebemos as palavras de Sara Duarte Brandão quando diz que “há muita magia no acto de honrar quem se admira”. Estamos perante um livro extraordinário, tecido com a brandura dos afectos e a força do não-dito, que celebra a memória daqueles que, no seu exemplo, fizeram de nós o que somos hoje. Intensas, emotivas, as palavras perfilam-se ao olhar do leitor como se de imagens num álbum de fotografias muito antigo se tratasse, em cada plano, em cada rosto, o passado e o presente de mãos dadas. Ao fazer de uma história que abalou a comunidade de São Pedro da Afurada o pano de fundo do romance, a autora faz dos “santos pretos” metáfora maior daquilo que uma comunidade escolhe calar. Tal como os santos, expulsos da Igreja e lançados ao rio, também a protagonista carrega em si o peso da exclusão e o brilho da transgressão. Na sua marginalidade, porém, abriga-se uma enorme beleza e integridade, reafirmação da certeza de que enquanto houver alguém para contar uma história — mesmo que em fragmentos, mesmo que em silêncio — a memória não morrerá.
Terna e sensível, de uma enorme força e coragem, a escrita de Sara Duarte Brandão ergue-se num clamor surdo para nos dizer que só pode ter medo dos santos da casa quem receia a audácia de uma mulher que, digna e livre, ousou atravessar o rio. Neste tecido narrativo, a força de Maria Teresa afirma-se pela recusa do lugar que lhe estava destinado, pelo fazer da solidão um refúgio e não uma punição, pelo ensinar Joana – agora menina, mais tarde mulher – a pensar, sentir e agir. Tida como assombrada, a casa sobre o rio é, na verdade, um lugar de esperança e recomeço, onde os fios do passado se entrelaçam com os do futuro. E é nesse espaço feminino — de partilha, de criação, de escuta — que se opera a verdadeira revolução: não a da força, mas a da transformação silenciosa de quem está a herdar uma forma de estar no mundo, a aprender a resistir e a combater a submissão. Talvez seja essa a beleza maior do romance: mostrar que a emancipação começa quando uma mulher tem coragem de olhar o medo nos olhos e continuar, mesmo que sozinha. Até que outra mulher, e outra, e mais outra, e muitas outras mais, a ela se cheguem e juntas façam o caminho.
Sem comentários:
Enviar um comentário