Páginas

segunda-feira, 7 de julho de 2025

TEATRO: "Vida: Uma Aplicação"



TEATRO: “Vida - Uma Aplicação”
Texto | Gisela Casimiro
Encenação, desenho de som, luz, cenografia e figurinos | Leandro Ribeiro
Design e apoio aos figurinos | Marta Baldaia
Interpretação | Daniela Adelino, Yasmin Lucchi, Renata Resende, Alexandre Pinto, Maria Reis, Maria Silva, Mariana Costa, Francisco Fidalgo, Sofia Oliveira, Sofia Miguel Costa, Margarida Laranjeira, Madalena Carvalho, Filipe Marques, Leonor Eglésias, Francisca Nata, Gabriel Garrido, Eduarda Terra, Rita Pereira, Maria Inês Campos, Sara Oliveira e Mafalda Reis
Produção | Sol d'Alma - Teatro
Promotor | Teatro Nacional D. Maria II - Projecto PANOS
75 Minutos | Maiores de 6 Anos
Auditório Sol d’Alma
05 Jul 2025 | sab | 17:00


Depois de, em 2022, ter sido seleccionado para a fase final do Concurso Nacional de Teatro Juvenil do Projecto PANOS - Palcos Novos, Palavras Novas, com a peça “As Cigarras Septendecim e Tredecim”, o elenco juvenil do Sol d’Alma - Associação de Teatro voltou a abraçar o desafio em nova edição do PANOS e, de novo, marcou presença num espectáculo final que teve lugar no Convento de S. Francisco, em Coimbra. Daí que o primeiro aplauso vá, com a devida vénia, para os actores e restante equipa do Sol d’Alma que fazem acontecer, dedicadamente e com enorme trabalho, coisas bonitas como esta. O aplauso maior vai para a forma como souberam pegar num texto que se instala no quotidiano de um mundo cada vez mais cego e surdo, e reflectir sobre o uso excessivo do telemóvel e suas redes sociais, onde o que conta é o captar da mais bonita fotografia ou da postagem instantânea do vídeo mais inusitado. Num registo que se aproxima do Teatro do Absurdo, o que a peça nos vem dizer é que absurda é a vida e o mundo em que coexistimos e não o Teatro. Mas vamos por partes.

Tudo começa numa típica tasca lisboeta, algures na segunda metade do século passado. Uma tasca frequentada por operários e donas de casa, escritores e senhorecas, onde se ouve Amália, se anuncia “O Costa do Castelo”, se celebram os Santos Populares e o tasqueiro é... uma tasqueira. É neste cenário que a nota de inverosimilhança se impõe na figura de uma “influencer” que, munida de telemóvel, tudo regista e tudo partilha nas redes sociais, ávida de mostrar ao mundo as personagens que tipificam um muito peculiar microcosmos social e de receber, em doses generosas, os correspondentes “likes”. Entre viagens de metro, combóio, autocarro, barco, taxi ou bicicleta, e respectivos pontos de recolha ou salas de espera, aquilo que a peça mostra é a quebra irremediável dos vínculos comunitários, da partilha de olhares, palavras e sentimentos, do cimento que nos torna cúmplices e solidários, em desfavor do imediatismo de uma mensagem num telemóvel, de um vocabulário reduzido a palavras como “postar”, “tweetar” ou “trollar”, dos egos reforçados por recompensas contadas em “gostos”, do “apagar memórias para instalar mais uma rede social”.

Quem leu o excelente “Estendais”, de Gisela Casimiro, sabe que é para nós que a autora escreve. Para todos e cada um de nós, sublinhe-se, mesmo que as prioridades divirjam, as rotinas se estranhem ou as origens se afastem. Através da escrita, a autora mostra-nos os seus lugares, as suas vivências, a sua forma de ver e sentir o espaço em volta, porque sabe que, tal como sucede consigo, haverá sempre alguém que encontrará o fim do mundo em Carnaxide ou em Válega. Isto sente-se e é por isso que nos toca tanto escutarmos, da sua voz, que “a negação caminha de mão dada com a prostração”, que “a fome é uma ameaça que demora muito a deixar-se ver” ou que “parecemos cada vez mais desabituados uns dos outros”. “Vida - Uma Aplicação” não é diferente. “Filha do Senhor Emoji e da Dona Figurinha”, a geração zoomer é a prova do quão mudado está o paradigma social, um olho no ecrã e outro no acontecimento, porque importa partilhar nas redes sociais as imagens da dor e do sofrimento, em vez de prestar auxílio e mostrar-se solidário com quem verdadeiramente precisa.

Está de parabéns Leandro Ribeiro por, uma vez mais, ter conseguido “dar a volta ao texto” e levar à cena, com imaginação e humor, uma peça complexa e aberta a múltiplas abordagens. Alicerçado num grupo de enormes actrizes e actores, o resultado final surpreende pela forma como tratou temas complexos sem os reduzir a meras metáforas. Na mente do espectador ficará o extraordinário quadro da agressão a uma passageira de autocarro, a remeter para o caso Cláudia Simões, com o julgamento em praça pública amplificado pela omnipresença dos telemóveis; como ficará o quadro da influencer a maquilhar-se enquanto explica uma cena banal do quotidiano. Ficará, sobretudo, um dos quadros finais que junta quatro pessoas num mesmo espaço, mas que dialogam entre si ao telemóvel para dizer, entre muitas outras coisas, que “a vida está tão José Régio”. “Beijinhos à família antes que me esqueça” e, enfim, toca a levantar do sofá onde lêem isto e a cantar comigo, bem alto, “e se a vida ligar / se a vida mandar mensagem / se ela não parar / e tu não tiveres coragem de atender / tu já sabes o que é que vai acontecer / eu vou descer a minha escada / eu vou estragar o telemóvel, o telele / eu vou partir o telemóvel”.

[Foto: © Manuel Vitoriano / https://www.facebook.com/soldalma]

1 comentário:

  1. Sempre muito atento e cirúrgico nos comentários. Obrigado. Abraço, Leandro

    ResponderEliminar