“Fiquei sem saber o que fazer. Nos nossos vinte anos de amizade, Inseon nunca me tinha pedido um favor tão despropositado. Quando dissera na mensagem para eu trazer comigo um documento de identificação, presumi que era uma situação urgente, que precisava que eu assinasse um formulário de autorização para uma cirurgia ou qualquer coisa do género. Foi por isso que apanhei logo um taxi, sem sequer passar por casa. Seria o sofrimento e o choque do que lhe tinha acontecido aquilo que estava a levar Inseon a agir de uma forma diferente? Estaria a responsabilizar-me pelo que tinha acontecido, por estar a trabalhar no projeto que eu tinha sugerido? Ou seria eu realmente a única pessoa a quem ela poderia fazer aquele pedido? A única pessoa que poderia largar tudo de um momento para o outro e passar quase um mês em Jeju a tomar conta de um pássaro, por já não ter emprego, nem família, nem uma rotina diária com algum sentido? Independentemente da razão, uma coisa era certa. Eu não podia recusar.”
Folheamos as primeiras páginas ao encontro de Kyungha, personagem principal de “Despedidas Impossíveis”, que parece mergulhada num processo de auto-destruição. A inacção tomou conta dela, praticamente não se alimenta e passa os dias enroscada sobre si mesma no pântano em que a sua cama se tornou. Nesse estado de abandono, é assaltada por um pesadelo recorrente no qual um vasto conjunto de troncos pintados de negro, semelhantes a lápides, vai sendo arrastado pelo mar. Pressentindo o fim próximo, decide escrever o seu testamento e nesse momento recebe uma chamada de Inseon, uma velha amiga, que lhe pede que a vá ver ao hospital. Fotógrafa e documentarista, Inseon sofreu um grave acidente e passa por um delicado e doloroso processo de recuperação. Num transe de dor e sofrimento, implora à amiga que lhe salve o pássaro de estimação, encerrado na sua gaiola sem ninguém que o alimente. Incapaz de recusar o pedido, Kyungha parte para a distante ilha de Jeju, onde se vê confrontada com uma violenta tempestade de neve que irá atrasar a chegada à casa isolada da amiga.
Temas recorrentes da escrita de Han Kang, a vida e a morte, a dor e a dádiva, preenchem as páginas do livro, marcando de forma intensa duas histórias indissociáveis uma da outra: A da personagem principal e a do povo coreano, sujeito ao terror de sucessivos regimes ditatoriais cujas práticas violentas resultaram em centenas de milhares de mortos. Através de Inseon, das suas memórias e de um conjunto de documentos de época, Kyungha irá ser confrontada com o massacre de Jeju, em 1948, aquando da declaração de lei marcial do presidente Syngman Rhee e da campanha anticomunista e de contrainsurgência dela resultante, levando à morte de 30.000 pessoas, cerca de dez por cento da população da ilha. Execuções sumárias, valas comuns, a repressão e o silêncio que se abateu sobre os massacres pesam, ainda hoje, sobre uma História negligenciada, mas na qual persiste a firme determinação dos familiares das vítimas em manter vivo um passado de luto e de dor e em reclamar o direito a enterrar os seus mortos.
Enquanto nos anteriores “Atos Humanos” ou “O Livro Branco”, a narrativa corria entre as múltiplas perspectivas das personagens, “Despedidas Impossíveis” sustenta o olhar de Kyungha do início ao fim do livro, levando a que o leitor sinta com maior intensidade o peso cumulativo de tamanha violência. Parte do que torna a prosa de Han Kang tão magnética é a justaposição do terno, do delicado e do grotesco. Contrapor a neve e a luz aos pequenos crânios perfurados por balas ou a um aglomerado de ossos e restos de tecidos empilhados no fundo de uma mina de cobalto é de uma crueza insuportável, mas que parte da tremenda consciência da autora sobre o corpo em sofrimento. Ao evocar as nossas fragilidades e a finitude da vida, o que Han Kang faz é lembrar a responsabilidade colectiva, estendendo-a ao cuidar dos que partiram. Começando com a dor da separação e fechando com a dignidade da preservação da memória, “Despedidas Impossíveis” surge como a mais angustiante, mas também a mais ambiciosa obra de Han Kang até ao momento.
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