Documental ou ficcional, abstracta ou satírica, interpretativa ou descritiva, a fotografia de rua corresponderá sempre à observação de um momento peculiar e gloriosamente fortuito que terá existido somente numa fracção de segundo, no preciso instante em que se mostrou inteiro e limpo e foi aprisionado pelo fotógrafo. Embalados por esta visão e pela enorme paixão que os liga à Cidade Luz, um grupo de fotógrafos criou, em Abril de 2011, o colectivo “Regards Parisiens”, com a ambição de provar que Paris não é só museus e que as suas ruas estão povoadas de vida(s). Entre os fundadores vamos encontrar Hélder Vinagre, médico, nascido em Aveiro em 1959, mas a viver em França quase há seis décadas. Embora o “bichinho” da fotografia o tenha “infectado” desde muito novo, foi um encontro fortuito com Robert Doisneau que acabou por levá-lo para os caminhos da fotografia humanista ao seguir o conselho para fotografar a vida tal como ela se apresenta na realidade. São dele estas “Legibilidades”, extraordinário conjunto de imagens que se abrigam no quotidiano urbano, com o tema da leitura a servir de aglutinador de interesses e vontades.
Segundo dados da Associação Portuguesa para o Controlo de Tiragens e Circulação, nos últimos dez anos os principais jornais portugueses de âmbito nacional – o semanário Expresso e os diários Correio da Manhã, Jornal de Notícias, PÚBLICO e Diário de Notícias – perderam metade da sua difusão em papel. Se recuarmos mais dez anos, vemos esta quebra situar-se nos setenta e cinco por cento. O fenómeno, contudo, não se resume ao nosso país. Foi isto que Hélder Vinagre percebeu com espanto, ele que faz das ruas de Paris e de outras cidades que visita a sua segunda casa, acabando por constatar que há hoje muito menos pessoas a ler um livro ou um jornal do que há uns anos atrás. “A maioria das pessoas que encontro hoje, na rua ou nos transportes públicos, tem os olhos mergulhados no ecrã de um telemóvel”, diz, acrescentando que “poucas estão a ler um romance ou imersas nas notícias diárias de um jornal”. Daí surgiu a ideia de captar alguns desses momentos fugazes de leitura para que pudessem ser preservados na memória colectiva de um tempo que, muito rapidamente, acabou por se ver rendido ao sortilégio do digital.
Numa esplanada ou à mesa do café, sobre a relva de um parque ou nas margens do Sena, elas e eles têm um denominador comum no livro ou no jornal que fixam com o olhar. Simultaneamente atento e sensível, o trabalho de Hélder Vinagre reúne um conjunto de “momentos literários” que são uma homenagem aos “resistentes”, ao mesmo tempo que estendem um abraço a todos os entusiastas que perpetuam o prazer da leitura e dos livros. As expressões nos rostos dos sujeitos fotografados dão nota de um profundo envolvimento com as histórias que desfilam à frente dos olhos, o artista a saber encontrar o equilíbrio entre o que é mostrado e o que apenas podemos imaginar. Mesmo as imagens mais simples mostram-se capazes de se desdobrarem em múltiplas camadas, convocando a atenção do visitante e a sua perspicácia. A necessidade de aproveitar o momento fugaz sem descurar questões tão importantes como a distância ou o enquadramento dão nota da competência técnica do fotógrafo, mas também da sua veia intuitiva. Isso e um preto e branco intenso e vivo, são convites a que poisemos demoradamente o olhar sobre a “beleza do banal”, transformada em arte pela magia de um clique.
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