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sexta-feira, 21 de março de 2025

CONCERTO: "Nova Europa" | Seconda Prat!ca



CONCERTO: “Nova Europa”
Seconda Prat!ca
Com | Sofia Pedro (soprano), Sophia Patsi (alto), Emilio Aguilar (tenor), João Paixão (barítono), Bram Trouwborst (baixo), Nuno Atalaia (barítono, flautas e direção artística), Asuka Sumi (violino), Xander Baker (viola da gamba), Hugo Sanches (guitarra barroca e tiorba), Martin Billé (guitarra barroca e tiorba)
CásterAntiqua - Festival de Música Antiga de Ovar
Igreja Matriz de Ovar
20 Mar 2025 | qui | 21:30


“Voltando ao assunto, creio que não existe nada de bárbaro ou selvagem nesta nação, pelo que me foi dito; excepto, que toda a gente chama de bárbaro ao que não é o seu costume. De facto, parece que não temos outro guia para a verdade, para a razão, do que o exemplo e as ideias e as opiniões e os costumes do país onde vivemos. Lá, está sempre a religião perfeita, a etiqueta perfeita, o uso perfeito e realizado de todas as coisas.”
Michel de Montaigne, in “Dos Canibais”

Ao analisar os costumes do povo Tupinambá, Michel de Montaigne, jurista, político, filósofo, escritor e humanista, nascido em 1533 na Dordonha, França, desenvolveu uma notável reflexão sobre “barbárie” e “civilização”, questionando quem estaria com a razão, se o povo Tupinambá ou o Europeu, que em nome de civilizar e tirar os outros povos da barbárie, cometia as maiores atrocidades. Este embate civilizacional, decorrente do achamento do “Novo Mundo” no dealbar do século XVI, levou a que a Europa, até então “o Mundo”, quisesse ser “o Centro do Mundo”. Como resultado imediato, dos vinte e cinco milhões de indígenas do México, só alguns milhares se mantinham vivos passado um século e a população andina diminuiu oitenta por cento em trinta anos. À luta pela sobrevivência seguiu-se a dominação cultural. Não sendo facilmente transmitida pelas armas, a fé cristã teve de ser incutida em cada mente através da arte e da música. Paradoxo dos paradoxos: Nascido em condições atrozes, no meio da destruição e do massacre, o barroco musical colonial está repleto de obras-primas, como facilmente se percebeu na noite de ontem graças ao maravilhoso concerto do Seconda Prat!ca.

A relação ética, política e musical entre a Europa e a América do Sul colonizada está no centro de “Nova Europa”, título do concerto e projecto musical do Seconda Prat!ca, de visita a Ovar na abertura do segundo fim de semana do CásterAntiqua – Festival de Música Antiga de Ovar. Numa Igreja Matriz repleta de público, o grupo teve para oferecer uma viagem musical através de um mundo em expansão, seguindo os passos da migração e hibridação da cultura europeia. “Distância”, “Missões”, “Crioulização” e “Catedral” foram quatro etapas de um processo de exploração das mutações das fronteiras e percepções dos continentes recém-colonizados, através da sua música. Mas o programa quis ver mais longe ao propor uma reavaliação dos fundamentos históricos que ainda nos levam a chamar “Novo Mundo” a territórios e culturas previamente existentes, e cuja opressão não é deveras passada. Daí que duas questões se imponham com a força e acutilância que o assunto deve merecer: E se um Novo Mundo nunca existiu? E se a Europa tivesse precisado de inventar um?

Foi, portanto, uma viagem. Através dela, as reflexões maduras andaram a par com os pensamentos de uma música em construção. Margens, tradição e civilização foram laços tecidos entre as diferentes peças, relevando o quanto de artístico, religioso, cultural e político se abriga em cada uma delas. Numa primeira etapa, percebemos a evolução das relações entre o estilo musical europeu e aquele da América do Sul colonizada. Foi tempo de escutar, entre outros, os sublimes “Dime Pedro por tu vida” e “Entre dos álamos verdes”, duas peças extraídos do Codex Zuola, de Cuzco, antiga capital do império Inca, e apreciar o resultado de uma verdadeira mestiçagem cultural. Num segundo momento, vimos como a música, embora com o claro objectivo de transmitir a fé religiosa, persistia nessa mistura de estilos, sendo possível encontrar em Arcangelo Corelli e D. Zipolli, do arquivo de Chiquitos, o muito que os une.

A “crioulização” deu conta da permeabilidade entre a cultura pré-colombiana e a europeia, com um tema como “Lanchas para baylar” (Anónimo, Codex Martinez Compañon, Trujillo) a revelar uma insuspeitada proximidade à passacaglia. Na última etapa, vimos como a música litúrgica se apropria do villancico, de origem profana, nesse afã de converter a população ao Cristianismo. “A la xácara, xacarilla” (J. Gutierrez de Padilla, Maitines de Natividad, Puebla) é disto um delicioso exemplo. Alternando música instrumental com vozes à Capella, coros polifónicos e prédicas recitativas, declamações ou simples apontamentos explicativos de carácter histórico, o Seconda Prat!ca proporcionou uma hora e meia de extraordinária música, no seio de um mundo de uma violência atroz e repleto de contradições. Uma palavra para os instrumentistas, cujos registos notáveis tiveram o condão de nos guiar entre dois mundos tão distintos e, contudo, tão próximos. Mas foi nas vozes das maravilhosas Sofia Pedro e Sophia Patsi, mas também de Emilio Aguilar, João Paixão e Bram Trouwborst que o concerto ganhou asas e se elevou a patamares de excelência. Uma noite inolvidável.

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