CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #93
Com | Vicente Niró, Marta Morais Miranda, Benjamim Quadros e Costa
Apresentação | Tiago Alves
150 Minutos | Maiores de 14 Anos
Escola de Artes e Ofícios
27 Mar 2025 | qui | 21:30
Além de serem nomes maiores da sétima arte, o que têm em comum Lawrence Olivier, Elia Kazan, Orson Welles ou Akira Kurosawa? A resposta está na ligação entre Cinema e Teatro, assente no grande número de filmes que realizaram e que trouxeram o palco para o grande ecrã. No Dia Mundial do Teatro, o Shortcutz Ovar quis homenagear todos os cineastas que, mais ou menos livremente, transpuseram o teatro para os seus filmes, e em particular Manoel de Oliveira, numa altura em que se cumpre uma década sobre o seu desaparecimento. O momento, assinalado com a imagem projectada do realizador, deu a escutar algumas palavras proferidas durante a entrega da Palma de Ouro de Honra de Cannes, com Oliveira a arrancar risos na plateia ao dizer “finalmente” e a confessar: “Cresci ao longo de um século, mas hoje sei que foi o cinema que me fez crescer”. Viva o Teatro. Viva o Cinema. E viva o Shortcutz Ovar que voltou a chamar à belíssima Sala Expande da Escola de Artes e Ofícios um numeroso público, numa sessão em que a casa foi o eixo à volta do qual se expandiram as três curtas do programa. Três propostas narrativas que, além de olharem a casa dos mais variados ângulos, tiveram em comum o facto de serem primeiras obras, dando a conhecer um leque de realizadores talentosos e criativos, de quem muito há a esperar no futuro.
Este segunda sessão da presente temporada teve o seu início com “T-Zero”, uma obra de imagem animada assinada por Vicente Niró. O filme acompanha o dia a dia de uma agente imobiliária que tenta persuadir os clientes a alugar apartamentos pouco maiores que caixas de sapatos, mesmo que isso signifique despejar os inquilinos que lá vivem. Em “T-Zero”, a casa é mera mercadoria, sujeita à especulação imobiliária e às leis do mercado. Aqui, a cidade é o Porto e o acelerado processo de transformação que sofre, com uma chamada de atenção para fenómenos como a gentrificação, a turistificação e a perda de identidade. Juntando a sua voz à daqueles que gritam “tanta gente sem casa e tanta casa sem gente”, Vicente Niró trabalha uma ficção com um forte cunho documental, na qual insere um conjunto de marcas identitárias que vão dos sons da cidade e da pronúncia do norte aos edifícios emblemáticos, às ruas estreitas e às nesgas de rio que a espaços se avista. Também ele vítima da precariedade - “vivo numa casa má, mas com janelas boas” -, o realizador oferece-nos um trabalho de animação com uma forte carga simbólica, convidando o espectador a olhar uma cidade que melhora para os turistas, à custa de quem sempre lá viveu. E deixa uma interrogação: “Um destes dias, quem é que vai fazer o S. João?”
“A Casa Imaginada”, de Marta Morais Miranda, foi “o irmão do meio” da sessão. Partindo de uma ideia de confinamento, a realizadora oferece-nos a visão daquilo que a casa representa em matéria de segurança e conforto, através do que decidimos ou não guardar no seu interior. Afastando-se da casa enquanto estrutura física, o documentário faz recair a atenção sobre o quotidiano e as finas camadas que se vão acumulando nos objectos, olhando-os de um ponto de vista sentimental. Nos gestos, nos cheiros, na loiça espalhada sobre a banca, nas marcas de uma parede ou numa toalha estendida sobre a relva, as casas anteriores invadem as novas casas, tomam conta delas. Entre o interior e o exterior, o individual e o comunitário, o permanente e o transitório, “A Casa Imaginada” faz um apelo à memória no esforço de enumerar o que há de comum aos lugares onde vivemos, lembrando um passe-partout, um candeeiro, um bibelô, um ou outro livro, o lugar que ocupavam nas casas anteriores e porque razão estão aqui de novo, qual a sua dimensão emocional. Neste contexto, há uma pergunta que pode ser feita, como se de um desafio se tratasse: E se tivéssemos de abandonar rapidamente a nossa casa, apenas com uma mochila às costas, o que poríamos lá dentro?
Enfim, “Maria, Maria”, de Benjamim Quadros e Costa, o filme que encerrou a sessão, reforçou a dimensão humana do espaço da casa. Convidando-nos a viajar até Escalos de Baixo, no distrito de Castelo Branco, o realizador apresenta-nos a sua avó, Maria João Pires, e abre-nos as portas do Centro de Artes de Belgais, laboratório de experiência das artes e de aprendizagem musical, um lugar de liberdade e “um acto de rebeldia”, de acordo com a pianista. Do acto da criação à partilha de emoções e sensações que a música proporciona, tanto a quem a ouve como a quem a interpreta, “Maria, Maria” explora algumas das facetas menos visíveis de uma das mais notáveis pianistas do mundo e uma das figuras mais relevantes da cultura portuguesa. Mas se o documentário é sobre a artista e o seu espaço íntimo, há nele uma segunda camada, não menos relevante, que reside na relação entre um neto e a sua avó, nos vínculos de amizade e afecto que transcendem o tempo e conectam diferentes épocas e vivências, nos valores e princípios transmitidos, a par das histórias familiares, usos e costumes. Deste ponto de vista, o filme acaba por dizer mais sobre o neto do que sobre a avó, apesar das belas reflexões que nos deixa, uma das quais encerra o filme de forma muito bela. Não é uma interrogação, antes uma afirmação: “É preciso deixar que as coisas aconteçam”.
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