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sábado, 1 de fevereiro de 2025

LIVRO: "Sem Destino"



LIVRO: “Sem Destino”,
de Imre Kertész
Título original | “Sorstalanság” (© 1975 Imre Kertész)
Tradução | Ernesto Rodrigues
Ed. Editorial Presença, Maio de 2003 (5ª edição revista, Janeiro de 2025)


“Na verdade - soube-se a pouco e pouco, e já nem sei bem de que maneira -, aquela chaminé, aqui em frente, não era de uma fábrica de curtumes, mas de um "krematorium", isto é, de um forno de incineração, como me explicaram. É claro que passei a observá-la melhor: era uma chaminé compacta e facetada, com uma boca larga e pesada, como se a tivessem golpeado em cima. Confesso: à parte um certo respeito - para lá do cheiro, naturalmente, em que já estávamos atolados, como numa espécie de lama fervente de pântano -, não sentia nada. Só que, ao longe, vimos outra chaminé, e outra, e, já na fímbria luminosa do céu, outra, espantados que duas delas cuspissem fumo, como a nossa, e os que distinguiam ao longe, atrás de um arremedo de bosque raquítico, uma nuvem de fumo que se elevava, tinham decerto razão, e perguntavam-se, justamente, pensava eu, que epidemia fazia assim tantos mortos.”

Não é fácil encontrar as palavras certas para descrever as emoções que se desprendem da leitura de “Sem Destino”, relato lúcido da brutalidade e do terror sob o jugo nazi no campo de concentração e extermínio de Auschwitz-Birkenau. Também não tenho a certeza de, ao usar as frases que me parecem mais adequadas, estar a respeitar devidamente o viver e o sentir de Imre Kertész, ele próprio um sobrevivente do Holocausto. Mas como falar de um horror que nenhuma imaginação comporta? Narrando a história de György Kövés, um judeu húngaro em plena adolescência, o livro começa por evidenciar uma candura que faz com que o protagonista não tenha consciência imediata do perigo que se abriga na imparável ascensão do regime expansionista nazi e da afirmação de um brutal anti-semitismo, o que o leva a encarar a estranheza do momento com esperança e optimismo, como se de uma aventura se tratasse. Tudo isto irá mudar muito rapidamente, a esperança num trabalho que faça de Köves uma pessoa útil a transformar-se em desconfiança, a inocência de quem pensa que tudo é provisório a ceder lugar a uma realidade monstruosa. Está em marcha a “solução final”, os campos de concentração como destino de milhões de judeus condenados ao extermínio.

Embora Imre Kertész refute a ideia de que “Sem Destino” é uma obra autobiográfica, a verdade é que o protagonista é, tal como o autor, um judeu húngaro com apenas 15 anos de idade, deportado em 1944 para Auschwitz, depois para Buchenwald e finalmente para Zeits, onde viria a permanecer até à libertação pelas tropas aliadas. Com Kövés somos levados numa verdadeira descida aos infernos, desde a viagem para a Alemanha num vagão de carga, sem água apesar de haver comida, aos momentos de espanto perante a imensidão do campo de concentração de Auschwitz, com os seus cuidados canteiros floridos, os arruamentos e os barracões de uma geometria meticulosa, a ordem que reina sob uma hierarquia que se estende aos próprios prisioneiros. Mas são as cabeças rapadas das mulheres, as parcas refeições, a identidade de cada um reduzida a um número, a forma arbitrária como se decide espancar alguém ou as altas chaminés das quais se liberta um fumo negro e que arrasta consigo um cheiro pestilento, que nos sobressaltam e nos deixam perplexos diante do abjecto e do inominável.

Publicado apenas em 1975, “Sem Destino” deixa adivinhar um processo doloroso no pós-libertação e as dificuldades do quotidiano numa Budapeste a renascer das cinzas e, desde logo, sob a esfera política da antiga União Soviética. O livro viria a ser determinante no reconhecimento da qualidade da escrita de Kertész, agraciado em 2002 pela Academia Sueca com o Prémio Nobel da Literatura. Independentemente da visão pessoal do autor sobre o horror à sua volta, o que mais impressiona é a sua capacidade de narrar o inenarrável sem trair um olhar não despido de inocência. É nesse ponto crucial que a sua escrita se revela, em simultâneo, tão terrível e tão poderosa, a visão sobre o absurdo e a forma como o seu espírito se adapta ao ponto de se sentir reduzido a nada, de perder a humanidade e, mesmo assim, recusar para si próprio a “solução final”, numa luta feroz pela sobrevivência. A par de “Se É Isto Um Homem”, de Primo Levi, este é um daqueles livros que nos coloca perante o incompreensível, o impossível, a realidade insuportável dos campos de extermínio. Um livro que nos dá força para, uma e outra vez, lutarmos contra a ignorância e a recusa de muitos em aceitar factos marcantes da História da humanidade.

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