Páginas

terça-feira, 21 de janeiro de 2025

TEATRO: "O Amor é Fodido"



TEATRO: “O Amor é Fodido”,
de Miguel Esteves Cardoso
Adaptação, direcção artística e interpretação | João Garcia Miguel
Apoio ao desenvolvimento do personagem | Michael Margotta
Figurino | Rute Osório de Castro
Produção | A Companhia João Garcia Miguel
70 Minutos | Maiores de 18 Anos
Centro de Artes de Ovar
17 Jan 2025 | sex | 21:30


No prefácio à edição reimpressa de “O Amor é Fodido” (Bertrand Editora, Outubro de 2020), Ricardo Araújo Pereira escreve o seguinte: “O sobressalto começa no título. Mesmo o leitor menos experiente suspeita que, embora escritores de todos os tempos e lugares se tenham dedicado a tentar definir o amor, talvez seja improvável que alguém alguma vez tenha optado por terminar uma frase começada pela expressão ‘o amor é’ com a palavra ‘fodido’. O amor costuma ter, apesar de tudo, boa imprensa - o que, pensando bem, é incompreensível. Dizer que o amor é fodido é, finalmente, tratá-lo como ele merece. É resumir, para quem não quer perder tempo com eufemismos eruditos, a etimologia da palavra paixão. Mas talvez ‘O Amor é Fodido’ seja menos uma história do que uma tese. Uma sugestão acerca de um modo de falar. Uma hipótese sobre o modo de lidar, literariamente e não só, com o amor. Uma proposta que questiona se será apropriado descrever uma doença aterradora com metro e rima e que propõe, por isso, uma espécie de antilirismo. Ou, talvez mais exactamente, um lirismo antilírico. De acordo com esta tese, dizer que o amor é fogo que arde sem se ver é que é obsceno. Notar que é fodido é mera candura.”

Tem razão Ricardo Araújo Pereira no que escreve e talvez devêssemos adoptar a sua forma de ver as coisas para melhor podermos valorizar o trabalho de João Garcia Miguel à volta de um assunto incapaz de gerar consensos. Apropriando-me do título daquilo que começou por ser um livro e que é agora levado à cena no gesto e na voz de um único actor em palco, direi que estamos perante uma peça fodida. Não só pelos altos e baixos de um texto complexo e que chega a ser incoerente na exploração que faz das memórias obsessivas em torno de um amor doentio, mas também pela opção de João Garcia Miguel em colar-se àquilo que a maior parte do público interpretará como “stand up comedy”, tão ao gosto de uns e tão repelente para outros. Aliás, este será mesmo o grande óbice da peça, pela forma como o (cada vez mais) popular género de fazer comédia se associa facilmente à alarvidade, à boçalidade, à grosseria e ao mau gosto. Não é essa, claramente, a intenção do encenador e actor, antes afirmar-se na vontade de explorar as suas capacidades interpretativas, numa abordagem a um “método” tão ao gosto do Actors Studio e aceitando correr todos os riscos na criação da sua personagem. Caso para dizer que o preconceito é fodido.

Se aplausos João Garcia Miguel merece, terão a ver com a sua vontade e capacidade em agarrar um texto do qual muitos fugiriam. Um texto desconfortável na sua essência, porquanto arrasta consigo verdades incontornáveis, sobre as quais continua a pesar um espesso e pesado manto de silêncio e hipocrisia. E, sim, refiro-me ao sexo na terceira idade, cujos contornos são entendidos como desajustados, doentios, aberrantes, ao passo que esses mesmos contornos, num contexto de pessoas vinte ou trinta anos mais novas, passam por “normais”, ou “um bocadinho à frente”, vá. Marcada por constantes variações de ritmo, de rima, de humor, a peça tende a não prender o público como seria expectável e desejável (há quem “desligue” e passe o tempo a olhar para o relógio, há quem adormeça). Mas vale a pena não desistir dela, pelo quanto se mostra capaz de despertar “o mostrengo que se esconde e habita nas profundezas” de cada um de nós, convidando-o a libertar-se. Talvez o actor pudesse optar por “suavizar” a linguagem, mostrar-se mais contido no gesto, ser menos directo com o público. Talvez. Mas alguém pagava bilhete para ver um amor “cozido”?

[Foto: Manuel Vitoriano | Ovar/Cultura]

Sem comentários:

Enviar um comentário