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quinta-feira, 17 de outubro de 2024

EXPOSIÇÃO: "365" | Carmo Diogo



EXPOSIÇÃO: “365”,
de Carmo Diogo
Museu Escolar Oliveira Lopes
04 Out 2024 > 26 Abr 2025


“ (…) Na casa nasci e hei-de morrer
na casa sofri convivi amei
na casa atravessei as estações
Respirei – ó vida simples problema de respiração
Oh as casas as casas as casas.”
Ruy Belo, in “País possível” (1973)

Há momentos felizes. Estar na sala de exposições temporárias do Museu Escolar Oliveira Lopes, rodeado de tantas obras quantos os dias que o ano tem, pode muito bem ser um desses momentos. Falo de “365”, exposição de Carmo Diogo concentrada em 365 trabalhos sobre papel em tamanho A4, acrescidos de varias outras formas de intervenção artística, da pintura à instalação, dos bordados aos livros de artista. Estabelecendo trajectos pessoais entre passado e presente, a série de trabalhos parte de imagens retiradas de antigos álbuns de fotografia de família e abre caminho a essa tentativa de “perpetuar momentos, cheiros, manifestações de protesto, lugares, situações, identidades dos lugares de outrora”. São, nas palavras da artista, “encenações de afectos ou inquietudes”, conjunto de íntimas reflexões descongeladas no tempo, momentos vividos e respostas emotivas cujo propósito último será o de reter aquilo que a memória acabaria por perder inexorávelmente.

As memórias são um campo de batalha. Vívidas ou desfocadas, leves ou impuras, tornam-se presente sem pedir licença e instalam-se com a certeza de quem possui esse poder único de mudar tempos e vontades. Num passeio à chuva, na doçura de um figo, no cheiro a terra molhada, num poema de Ruy Belo ou numa cantiga do Zeca, surgem num repelão, inescapáveis, prontas a despentear-nos a alma com a força de um ciclone ou, como leve brisa, a envolverem-nos numa carícia. Erguê-las num corpo de trabalho rico de significados e guardá-las na forma de objecto artístico foi rito catártico de quem deixou para trás a “casa mãe e as suas raízes” e, com elas, uma vida em cujo arco temporal cabem o choro e o riso, o sonho e as mais duras realidades. Num trabalho metódico dominado pela colagem, o traço do pincel ou da esferográfica vê-se em desenhos que corporizam a memória, sóbrios, imoderados, inocentes ou cáusticos à vez. O resultado é fascinante, as obras a disputarem entre si a primazia de nos tomarem pelo braço e nos dizerem, num sussurro, que aquelas memórias também são nossas.

Eloquente no delicado exercício de mostrar que a verdade é mais uma opção do que uma obrigação, Carmo Diogo faz do seu resgatar de imagens, corpos e histórias, um exercício contínuo de criação de novas imagens, espécie de ficção baseada no real. Tópicos como os privilégios inerentes ao homem no seio familiar, os códigos baseados na ocultação da violência exercida sobre a mulher, a maldade a pesar sobre aquelas que ousam desafiar a ordem patriarcal ou a exigência de padrões de conduta castradores, são abordados nos trabalhos da artista com intenção e acutilância, acentuando a multiplicidade e complexidade do ser mulher. Mas há também o lado político das questões levantadas neste conjunto de trabalhos, conectando as esferas pessoal e social e traçando um retrato de época onde se revela a natureza sistemática da opressão de grupos inferiorizados que viram apagadas as suas vozes. Este “dar voz a quem não a tem” mostra a intencionalidade da artista e, ao mesmo tempo, a sua inteligência, na forma como desenvolve os seus trabalhos: Aqui uma piscadela de olho a Alberto Caeiro, ali um abraço a Mário Cesariny, mais além um passeio de braço dado com o Senhor Hulot. Há momentos felizes!

2 comentários:

  1. Deve ser muito interessante, obrigada.

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  2. Muito obrigada Joaquim Margarido!! Há momentos felizes e sim, sinto-me muito agradecida pelas palavras e pela atenção do olhar e ver. Um bem haja!
    Cumprimentos,
    Carmo Diogo

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