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quarta-feira, 8 de maio de 2024

LIVRO: “Catarina e a Beleza de Matar Fascistas”



LIVRO: “Catarina e a Beleza de Matar Fascistas”,
de Tiago Rodrigues
Posfácio | Gonçalo Frota
Ed. Edições tinta-da-china, Abril 2024


“Quando matamos, damos sentido ao nosso gesto. Como quando cozinhamos. Quando trabalhamos a terra. Quando fazemos o que nos apaixona. O sentido está no gesto. Tem de haver carinho, cuidado, detalhe. Mesmo na violência. Mesmo no assassínio. Se reconhecermos a beleza de matar, fazemos parte da História e estamos com todas as que morreram às mãos dos fascistas, a lutar pela liberdade e por um mundo mais justo.”

A 19 de maio de 1954, em Baleizão, Catarina Eufémia foi assassinada pela Guarda Nacional Republicana com três tiros pelas costas. Paz, trabalho e pão eram o motivo da sua luta, e nesse dia participava numa greve de trabalhadores rurais alentejanos clamando por melhores salários. No momento do crime, ao lado de Catarina estava uma mulher. Do lado oposto, de pé junto ao assassino, estava um soldado. O soldado era marido desta mulher e pai dos seus filhos. Foi morto com a própria pistola, disparada pela mulher ao cair da noite. Com a morte, uma promessa. Com a promessa, uma herança: “Enquanto viva, no dia em que mataram a minha Catarina, cairá um fascista que não tenha feito nada ao ver cair uma mulher. Os que disparam carregam um peso maior e talvez os castigue a justiça. Os cúmplices voam leves como andorinhas. Nenhuma assassinada esquecida. Nenhum cúmplice perdoado. Espero o mesmo de vós. A partir deste dia, todas vós, as que nascerdes do meu sangue, sereis Catarina.”

“Quem viu morrer Catarina, não perdoa a quem matou”. As palavras de Zeca Afonso parecem atravessar este texto, da autoria de Tiago Rodrigues, ao longo do qual uma família reunida numa casa de campo, no sul de Portugal, se prepara para dar cumprimento ao dever de matar um fascista, no dia em que se cumpre mais um aniversário da morte de Catarina Eufémia. Baseando o texto nos ataques que as democracias vêm sofrendo um pouco por todo o lado, o autor lança um olhar certeiro sobre a tolerância com que são tratados os intolerantes e interroga-se até que ponto podemos quebrar as regras da democracia para melhor defender as suas causas. Num ambiente de tensão crescente, o fantasma de Catarina Eufémia a tocar-nos nas mãos com as suas mãos frias, esgrimem-se opiniões, partilham-se dúvidas, pesa-se o medo e a cobardia, o dever e a justiça, enquanto a História nos segreda ao ouvido que “qualquer fascista pode ser o fascista que tem a ideia de enfiar um povo inteiro numa carruagem de comboio”.

“Catarina e a Beleza de Matar Fascistas” tem no posfácio, da autoria de Gonçalo Frota, um precioso documento que contextualiza a peça e a enriquece. Aquilo que estava fadado para não ir além de um artigo de jornal com algum fôlego, viria a transformar-se num ensaio com uma centena de páginas, testemunho vivo de um processo criativo subjacente a uma questão fulcral: “Como chegámos aqui?” Da notícia de um acórdão do juiz Neto de Moura, de que todos estamos lembrados pelas piores razões, à peça que viria a subir à cena no Centro Cultural Vila Flor em Setembro de 2020, há um longo caminho feito de residências, workshops, muitos livros, séries, filmes, discursos, uma playlist em permanente construção, debates e ensaios, com muitos cortes e acrescentos à mistura. À criação da peça não foi alheio o ambiente social e político vivido, com uma pandemia de permeio e a eleição do primeiro deputado pela extrema-direita nas legislativas de 06 de Outubro de 2019. O tempo passou e a peça fez o seu caminho, deixando um rasto de plateias incendiadas pela ideia de que “a democracia não está a salvo só porque a ditadura ainda é uma memória viva”. Hoje, o partido de extrema-direita vem de eleger cinquenta deputados para o parlamento!

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