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segunda-feira, 27 de maio de 2024

CONCERTO: Manuel Freire



CONCERTO: Manuel Freire
Posto de Turismo do Furadouro
25 Mai 2024 | sab | 16:00


Falar do concerto de Manuel Freire do passado sábado é falar de memórias que nos são gratas, que nos confortam e põem no rosto um sorriso. Memórias que nos fazem recuar muitos anos nas páginas do tempo, lançando o olhar sobre um Furadouro que, para o bem e para o mal, já praticamente nada tem a ver com aquilo que hoje é. Mas também sobre essa personalidade ímpar da música portuguesa, Manuel Freire, nascido num 25 de Abril, figura que ajudou a espalhar a poesia de José Saramago, José Gomes Ferreira, Vitorino Nemésio, António Gedeão e tantos outros, na forma de melodias belas, inspiradas e plenas de significado. Levado a cabo no âmbito da exposição “O Teatro do Furadouro e das suas Gentes: Para Recordar e Guardar”, o concerto constituiu-se numa revisitação da revista teatral “Há Peixe na Rede”, levada à cena em 1980 pela Secção Cultural do Grupo Desportivo do Furadouro, com dramaturgia e encenação de Álvaro Vilas, cenários de António Melo Rosa, danças de Zita Iglésias e composição musical de Manuel Freire (com um naipe de instrumentistas em palco onde pontificavam Manuel Valente, Áureo Neves, Manuel Godinho e o Padre Bastos).

“Nel, estás-me a ouvir? Houve um tempo em que não havia trabalho que eu não pegasse. Era o mar, era as enguias, era as pinhas… Mais tarde foi a areia… Eu sei lá! Muita fome se passava naquele tempo. Nem m’alembra das vezes em que o comer era um caldo com três ‘coives’ e uma batata, um pedaço de broa e um copo de vinho. Era o vinho que ajudava a esquecer e a enganar a fome que se sentia”. Definindo o alinhamento do concerto pela sequência de quadros da peça, Manuel Freire começaria por partilhar com o público as suas memórias de um Furadouro que já não existe: A capela ao cimo da Rua do Comércio do Porto, o palacete dos Malaquias ao Sul onde o grupo de teatro ensaiava “O Meu Caso” ou “A Ceia dos Cardeais” sob a orientação do Sr. Mário Cascais, as aventuras no Ford V8 do Sr. José Silva e um palheiro que quase se despenhou, o Hotel Marisol, a discoteca “Aranha” e os bailes da Assembleia, o Ezequiel a assar sardinhas, os barcos na rebentação e os bois a puxar as redes, a apanha da areia e o trabalho escravo pago em senhas, o tipicismo dos palheiros e as condições de vida degradantes de quem os habitava.

Os acordes da canção “Olha o Mar, Olha a Maré” fazem-se ouvir na voz do cantor. “Olha o barco a partir: / Encosta o ombro com jeito / Olha o mar, olha a maré / E este vento a encher o peito”. Cerramos os olhos, deixamo-nos levar pela imaginação e é como se regressássemos ao Centro Vidreiro, a sala às escuras enquanto se projectam slides e fotografias sobre o Furadouro com o objectivo de situar a acção. O avô e o neto prosseguem a sua conversa, enquanto vemos o barco chegar a salvo, os barretes atirados ao ar, a rede em terra, os homens a acartarem rapichéis. Forma-se uma lota, o monte é vendido, chegam as peixeiras para colocarem o peixe nas canastras e começa a “Canção da Sardinha”, modinha mexida que fala da tão apreciada “rainha dos peixes” (“o cação era deitado fora, ninguém o queria”). A melodia do Hino dos Mineiros das Astúrias é adaptada ao quadro seguinte, “O Enterro do Pescador”, e lembra que “(…) já cá falta um camarada”. Segue-se “Os Trabalhadores da Areia”, aviltante negócio cuja paga era uma chapa, “amarela para o godo e chapa branca para a areia fina”. “Levanta e carrega!! Levanta e carrega!!”, canta Manuel Freire, colocando na voz a dor daqueles que a tudo se sujeitavam para não verem os filhos a morrer à fome.

Do linguajar de “As Varinas” – “Badalhoca!! Puta velha!! Vai nos cornos do teu pai. Anda! Cornuda é a tua mãe mais a tua família toda, minha vaca” –, com muitos puxões de cabelos à mistura, passa-se ao quadro “Os Palheiros”, a crítica social a impor-se na forma como o turista os admira e na realidade dura de quem neles habita: “Ai tão simples e castiço / Ai tão belo e pitoresco / É dormir nestes palheiros / Com o rabo bem ao fresco.” As “Figuras Típicas” não podiam cá faltar, pontificando o Albertinho e o Ti António Floro, o Ezequiel e o Magalhães. A crítica social estende-se às “Maravilhas do Furadouro”, o dedo apontado à Câmara e ao Turismo, “Um fenómeno sem par / Só se lembram que existimos / Durante a época balnear”. Num misto de tristeza, mas também de alegria e de esperança, a peça chega ao fim, a canção como um pedido: “[A vida do nosso povo], / Mostrem-na a toda a gente / De cabeça bem erguida. / Abram portas e janelas / Sobre esta vida esquecida.” O concerto terminou com a interpretação de “Os Poemas do Minho”, com letra de Martinho Marques, e da inevitável “Pedra Filosofal” que tanto emocionou a plateia. Sem música, mas com belas imagens e textos, a exposição continuará patente no Posto de Turismo do Furadouro até 23 de Junho.

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