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segunda-feira, 29 de abril de 2024

LIVRO: "Taludes Instáveis"



LIVRO: “Taludes Instáveis”,
de José Carlos Barros
Edição | Maria do Rosário Pedreira
Ed. Publicações Dom Quixote, Março de 2024


“A fotografia faz-nos duvidar por instantes, não era
assim que nos lembrávamos de nós.”

No que separa passado e presente, mas também naquilo que os une, encontra a poesia de José Carlos Barros o porto de abrigo, a sólida amarra, um elo comum. Uma poesia que revisita as memórias e as fotografias, sabendo que umas e outras contam histórias diferentes. Poemas onde se vertem os lugares da infância e juventude, se lembram os amigos, se diz um nome como quem acende uma lâmpada. Um regressar às coisas simples, sem saudosismo, sem mágoa, na certeza do caminho percorrido como coisa nossa, pessoal e intransmissível. Um abraçar o que resta do que fomos, depois de passado pelo crivo da memória: O relâmpago no pátio, o clarão de um incêndio, os rostos a saírem dos retratos a sépia pendurados nas paredes, as lareiras acesas no Inverno, as palavras de fevereiro, o mundo virado ao contrário no espelho da represa, os movimentos de uma cobra de água enfiada num frasco de tofina, uma navalha de ponta-e-mola, a noite em que mataram Santiago Luís Fernandes.

Mas nem só de memórias vive “Taludes Instáveis”, livro que reúne um conjunto de poemas escolhidos de obras que o autor foi publicando ao longo de quase quatro décadas, além de alguns inéditos e das publicações em revistas ou plataformas digitais. Nele encontramos um olhar agudo, não isento de ironia, sobre o tempo presente, com as suas certezas e contradições, os seus dilemas e perplexidades. Um olhar como prolongamento da memória, nela ancorado, qual fotografia em que o primeiro plano surgisse desbotado e o fundo se aclarasse numa nitidez irreal. É tempo de olharmos à nossa volta e vermos como a Maria vai com as outras é princesa no reino do racha e escacha, os homens não se apercebem de que estão parados e continuam a ouvir o barulho dos próprios passos, a dificuldade em decidir entre o salvar a alma e ter numa noite fria de Inverno a lareira acesa, os tapetes de uma tecedeira de Beiriz exactamente iguais da frente e do avesso, “como as pessoas verdadeiras”.

Com este livro, José Carlos Barros traz para primeiro plano a literatura e revela o seu “poder quase obsessivo ”. Da poesia faz prosa e da prosa poesia (mas isso já nós sabíamos de livros como “Um Amigo Para o Inverno” ou “As Pessoas Invisíveis”). Percebemo-lo na ternura com que trata os lugares distantes, por mais hostis que sejam, no respeito com que fala das gentes, mesmo que de cenho fechado. Sorrimos ao ver como extrai um grito de uma pintura, ergue uma espécie de música rumorosa de uma casa em ruínas, converte em revolução o brilho dos cromados dos automóveis, desdobra o tempo de uma fotografia antiga. Como faz de um punhado de números um soneto à maneira antiga, como elogia um Luís Vaz ou dá voz ao lamento da florista do Bolhão a propósito de um leilão na Sotheby’s. Como nos diz que “o amor é / não gostares de futebol / e ires comigo ver / o Olhanense”. Entre “armadilhas” e o “regressar às coisas simples”, “Taludes Instáveis” é muito mais do que um livro de poemas: É a vida, ela própria, a abrir-se em beleza e mistério.

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