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sábado, 20 de maio de 2023

LIVRO: "Salvar o Fogo"



LIVRO: “Salvar o Fogo”,
de Itamar Vieira Junior
Edição | Maria do Rosário Pedreira
Ed. Publicações Com Quixote, Abril de 2023

“As mãos ásperas seguraram a enxada e desceram à terra chispando fogo junto a seu corpo humilhado. Se daquele chão não brotava urtiga nem capim-navalha, muito menos nasceria batata, inhame e aipim para alimentar a família. Mas precisava trabalhar com sofreguidão, com raiva, com ódio, afinal era o terra o animal a lhe devorar os anos e a cada golpe ele devolvia o recebido. Para aquele homem sem futuro, a terra era tão rara quanto o ouro que diziam existir a caminho da serra. Era ainda pior: o ouro não se via em todo o canto; o metal não habitava o mundo de uma maneira tão ostensiva quanto a terra.”

Uma noite de lua cheia. A dor violenta que atravessa o ventre. Uns pés que tocam a água, o corpo que se desvia na corrente. As águas que inundam corpo e coração. Um corpo que nasce, coado nas vestes, banhado de lua. Uma vida, inundada de rio, que nunca mais será a mesma. Depois de “Torto Arado”, Itamar Vieira Júnior volta a surpreender-nos com um romance intenso e poderoso. Uma escrita em permanente incandescência, ora quente e acolhedora, ora colérica e destrutiva, que tanto se abre em caminhos de luz e é chama que guia, quanto ateia tudo à sua volta e nos lança no mais profundo desespero, o olhar turvado pelo fumo, na boca um sabor acre que não se apaga. Uma escrita do fogo, sim, mas também do ar que o inflama, da terra que o alimenta, da água na qual desenha os seus reflexos. Fogo, ar, terra e água, a mais elementar toada na roda dos sentimentos, num livro que é poema, grito e voz dos que a não têm.

Podia dizer-se que esta é a história de Moisés. Não daquele Moisés que chapinhou nas macias areias do Nilo, cresceu em palácios, fez da palavra um fogo capaz de consumir as injustiças e transformar as trevas em luz e guiou o seu povo à Terra Prometida, mesmo que nunca tenha chegado a pisá-la. Antes de um Moisés que cresceu num tosco barraco da Tapera, enterrou os pés na lama do Paraguaçu, sofreu o horror da violação e desapareceu na noite rumo a uma terra de promessas por cumprir. Moisés que, aos sete anos, teve a oportunidade de ir para a escola, algo que acontecia na família pela primeira vez. No ambiente de um Mosteiro do século XVII, tendo por professores os monges, aprendeu as letras e as contas, brincou e brigou, e percebeu que o Mal se esconde onde menos se espera. A incompreensão e o medo, a dor e a raiva irão tomar conta de si e acompanhá-lo até ao dia da vingança.

Embora muito forte, a personagem de Moisés cede o lugar à de Luzia no coração da história. Uma Luzia marcada pela deformidade do seu corpo, magoada pela calúnia e a maledicência dos habitantes da aldeia, que assiste à partida dos irmãos e à morte dos pais até ficar sozinha, mas que persiste na afirmação da sua liberdade, na luta contra as injustiças, no apego à terra que lhe querem roubar. Nesta mulher está a força de Bibiana e Belonísia, as heroínas de “Torto Arado”. Nela estão todas as mulheres que tudo sofrem, tudo suportam, que a tudo resistem. Mulheres que carregam nelas a alma dos ancestrais, a sabedoria que reside nos banhos de folha, na raíz do loco, no olho-de-fogo-rendado, num provérbio, numa oração, num manto de penas bordado, na palha acesa para a Caipora. Mulheres que conseguem ver aquilo que as muitas águas de muitas marés são incapazes de afogar, o homem branco que traz a morte consigo, a cruz erguida, a espada enterrada no coração de outras crenças, as humilhações, a dor e a doença. Mulheres capazes de salvar o fogo.

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