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terça-feira, 23 de maio de 2023

LIVRO: "A Resistência"



LIVRO: “A Resistência”,
de Julián Fuks
Ed. Companhia das Letras, Abril de 2023 (1ª. edição, Fevereiro de 2016)

“Mas há pesares que não sucumbem a argumentos, há dores que não se exageram. Há histórias que não se inventam à mesa, entre goles e garfadas, entre papos quaisquer, histórias que recusam a proximidade com a leveza, que não se prestam à ruminação corriqueira, às frases diárias. Há casos que não habitam a superfície da memória e que, no entanto, não se deixam esquecer, não se deixam recalcar. No espaço de uma dor cabe todo o esquecimento, diz um verso sobre estas coisas incertas, mas os versos nem sempre acertam. Às vezes, no espaço de uma dor cabe apenas o silêncio. Não um silêncio feito de ausência das palavras: um silêncio que é a própria ausência.”

Quarenta e sete capítulos, duzentas e doze páginas e uma história que começa num irmão e acaba no outro. Ou, melhor dito, uma história que parte do interior de um irmão para olhar o outro, ao mesmo tempo que olha o pequeno mundo familiar e o grande mundo onde nos movemos, com as suas ameaças e contradições, a sua insensibilidade e crueldade. Uma história que tem o seu início num momento dramático, na sequência do golpe de estado de 24 de Março de 1976 que depôs a Presidente Isabelita Perón e instaurou uma sangrenta ditadura militar na Argentina. Julián Fuks nasce em S. Paulo cinco anos depois, abrindo-se aqui um hiato de tempo que necessita ser preenchido. Entretanto há Emi, “muito mais que o irmão possível”, a quem o livro é dedicado. E há essa dor das mais de cinco centenas de crianças retiradas às famílias que se opunham à ditadura, entregues para adopção sem qualquer tipo de registo e reclamadas desde 1977 pelo movimento das Mães e Avós da Praça de Maio. As dúvidas avolumam-se. A angústia cresce de tom até aos limites do suportável.

De que forma construímos uma memória quando a memória das coisas nos escapa? É nisto que penso ao terminar a leitura de “A Resistência”, do escritor e crítico literário brasileiro Julián Fuks, vencedor do Prémio Literário José Saramago em 2017. Do domínio da ficção, este é um exercício que envolve riscos, um edifício imaginário (ou imaginado) tornado tão mais sólido quão sólida se mostra a argamassa do real que o sustenta. Aqui, porém, o real está povoado de fantasmas. Explorá-lo é explorar questões do foro mais íntimo, é mergulhar no caldeirão dos próprios sentimentos, remexer um passado outro, diferente daquele que se julgava conhecer, arranhar a pele até descobrir a verdade que se esconde no sangue. É aceitar sem reservas aquilo que se poderá encontrar, na certeza de que muitas portas se irão fechar, muros erguer-se-ão e nada será como dantes. Esta é, porventura, a mais extraordinária lição das muitas que o livro tem para nos dar: a de que a coragem tem um preço.

Romance autobiográfico? As pistas que o leitor vai recolhendo parecem caminhar todas nesse sentido, a começar pela referência às origens de Fuks, que remetem para uma família judia na Alemanha, um dos patriarcas criador da botânica - “merecendo uma flor e uma cor que o referem, uma flor e uma cor que também herdamos”. Há, porém, um Sebastián em vez de um Julián, para que as questões não se tornem tão óbvias. A “resistência” do escritor, porém, é desmascarada por uma sinceridade tocante, pela forma como se angustia perante a impossibilidade de “decidir se isto é uma história”. É nessa angústia que o livro nos agarra, mesmo que os pontos de contacto entre as histórias de resistência narradas pelo autor e as histórias de cada leitor sejam escassos ou mesmo nulos. Sem conhecer o irmão, Sebastián não conseguirá conhecer-se a si mesmo. Por isso não baixa os braços e insiste em vasculhar na memória cada pedaço de si. Por isso faz da escrita um acto de resistência em busca da verdade.

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