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domingo, 28 de agosto de 2022

CONCERTO: Silly



CONCERTO: Silly
FAZUNCHAR 2022
Casa da Cultura de Figueiró dos Vinhos
19 Jun 2022 | Sex | 21:30


As luzes extinguem-se lentamente e, do nada, rompe o som de água a correr. Ao delicado rumorejar vem juntar-se o trinado dos pássaros num harmonioso abraço. Um vento morno faz baloiçar os ramos das árvores ao mesmo tempo que se percebe o chapinar de uns pés na água. Pedras lançadas da margem abrem crateras no seio do rio. Espalhados pelo vale, o som dos sinos chama os crentes para a missa dominical. Escuta-se o entoar de louvores e hosanas. Na sua homilia, o padre falará de um Deus sempre vivo, sempre adorado, glorificado e exaltado pelo tempo dos tempos. Sobre as suas palavras, uma música nasce. Há nela uma harmonia e um ritmo que acentuam a relação profunda do homem com a natureza, o respeito pelos elementos, o conhecimento ancestral dos ciclos da vida, a religiosidade presente em cada gesto, em cada pensamento. “Aleluia, aleluia!”

Convite à reflexão e à introspecção, foi esta a fórmula encontrada por Maria Bentes aka Silly para partilhar com os presentes na Casa da Cultura de Figueiró dos Vinhos o resultado daquilo que ela própria considerou “uma semana muito bonita”, passada em residência artística a convite da organização do FAZUNCHAR 2022. Percorrendo uma linha profundamente intimista, a multi-instrumentista, cantora e produtora açoreana desvendou, por um lado, toda a musicalidade que pode abrigar-se nas coisas mais simples, ao mesmo tempo revelando o quão inspiradores são os sons do quotidiano, simultaneamente sujeitos e objectos de um universo sonoro que a artista ousou captar, lançando ao público o desafio de o descobrir, seja no manancial de água que canta nas Fragas de S. Simão, num soneto declamado pelo Senhor Alcides ou na técora (palavra que em lainte significa cartada), nesse contar das vazas, no embaralhar e voltar a dar, no som seco dos nós dos dedos que batem com força no tampo da mesa, vincando uma cartada vencedora.

Quarenta minutos durou o concerto, que o mesmo é dizer que bastaram quarenta minutos para todos percebermos o diamante em bruto que se esconde por detrás da cantora. Que diz fingir que não sabe como é que tudo funciona, que faz do seu caminho um sonho acordado, que vive na angústia de se sentir pássaro e gaiola ao mesmo tempo ou que quer fazer tudo mas acha que tudo o que faz não vale nada. Neste cruzamento entre as palavras e a música, Maria Bentes vai pintando os mais belos quadros, através dos quais descobre e se descobre, em coragem, vontade e certeza de ser este o caminho certo. Com uma viola acústica particularmente depurada, a paleta rítmica a abranger, com o mesmo toque delicado, a bossa nova, o jazz ou o hip hop, Silly veio reforçar aquilo que “Viver Sensivelmente”, o seu EP de estreia anunciava já: o sentimento à flor da pele, a força da razão subjugada ao querer do coração. Se dúvidas houver, ouça-se “OSC” ou “Vida a Mil” e perceba-se o quão desarmantes são as suas palavras e a sua música. Silly é ela própria, o que vê e sente, aqueles com quem se cruza, sem máscaras nem armaduras. Foi assim em Figueiró dos Vinhos. Sê-lo-á sempre. O futuro encarregar-se-á de o confirmar.

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