O território das artes não cessa de se expandir. Explorando novos temas e formatos, diversificando suportes, ampliando géneros artísticos, as propostas vão-se perfilando em número crescente, prova da criatividade e da vitalidade de um sector menosprezado pelos grandes decisores mas que, ainda assim, resiste e persiste. “Desencapados”, de Felipe Marcondes da Costa, é disso prova irrefutável, a arte como mecanismo de intervenção feita ao arrepio das convenções, a mensagem despojada de formalismos inúteis, quiçá desprezíveis. Tudo por conta de um conjunto relativamente curto de objectos expostos, folhas de papel de cores e tamanhos os mais variados, fixados na parede de forma precária. Analisados de perto, encontramos neles documentos que fixam etapas de vida, distantes, solenes, protocolares, “adulterados” pela humanidade de uma palavra, de uma frase, de um poema.
Num exercício de intertextualidade levado ao limite, Felipe Marcondes da Costa junta a dois convites uma oferta. Embora a ordem possa ser arbitrária, começo pelo convite que me parece mais imediato, o de estabelecer pontes com o lado “formal” do artista-cidadão, cruzando o espólio documental que nos é dado observar com as nossas próprias memórias (afinal, quem nunca lançou um olhar sobre pautas escolares, bulas de medicamentos, comunicados, regulamentos, atestados médicos ou extractos bancários, neles depositando ansiedades ou perplexidades?). Há, depois, o convite à fruição da poesia. Entranhadas no corpo dos documentos, acomodadas nos breves espaços em branco, enroscadas entre linhas e colunas, mais à esquerda ou mais à direita, no cabeçalho ou no rodapé, as palavras abrem-se em poemas de Fernando Luís Chivite ou de Sean Bonney, de Bertolt Brecht ou de Octavio Paz. Enfim, a oferta: um jogo de correspondências. “Com cuidado examino” sobre um extracto bancário, “a estranha narrativa” num texto rasurado, um sublime “porque te amo” numa “informação complementar”.
Na sua aparente simplicidade, esta fórmula é um verdadeiro catalisador de tensões: Entre o real e o ficcionado, a acção e a reacção, o taxativo documental e a “intromissão” de um poema, a burocracia que castra e a criação que liberta. Um livro de Herberto Hélder é objecto subtraído. Um receituário é uma súplica. Uma participação policial é um manifesto contra a própria polícia. “Os justos”, um poema de Borges, derrama-se numa folha em branco. Entre a letra de forma e a caligrafia, o silencio é ensurdecedor. “Diário, autorretrato, autobiografia”, nada disso ou tudo ao mesmo tempo, a mostra é um poderoso manifesto contra a regra que pretende normalizar passos e pensamentos. Subversivo na forma como questiona o passado e aponta novos rumos ao futuro, “Desencapados” incita o visitante a buscar a cor no que até aqui era apenas cinzento, a dar um murro na mesa e um pontapé no preconceito. A alinhar a voz com a do poeta e a “meter um pauzinho na engrenagem”.
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