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quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

LIVRO: "A Galeria dos Notáveis Invisíveis"



LIVRO: “A Galeria dos Notáveis Invisíveis”, 
de Afonso Valente Batista 
Ed. Edições Parsifal, Julho de 2021


“É o que se vê. A cobiça desenfreada desta canalhada mandou o país para o buraco mais fundo que havia, com uma dívida que hipoteca a vigésima quinta geração a contar de agora. O que me dá mais comichão é saber se os que dizem que isto é tudo uma cambada de alforrecas da roubalheira conseguem pôr a coisa a funcionar como deve ser, sem ratonas a abotoarem-se com o graveto que não é deles ou a emprestá-lo a amigos, amiguinhos, amigalhaços ou outros papagaios emplumados que dormem em cama de dossel e têm pessoal habilitado para lhes cortar as unhas dos pés e ensiná-los a como não pagarem.”

Regressar a Afonso Valente Batista e à sua escrita é regressar a uma casa que reconheço dos cavoucos ao telhado. Uma casa feita uma ruína, parte da cobertura derrubada por onde a água da chuva escorre em abundância, as ombreiras de portas e janelas desconjuntadas convocando o uivar do vento, o soalho de madeira apodrecido pelo tartulho, a tinta da parede comida pelos bolores, um cheiro de passados acumulados sem préstimo nem serventia. E, todavia, uma casa que se abre de par em par para me receber e confortar, que me aproxima da verdade das coisas simples, em cuja penumbra consigo ver tudo mais claro, que me devolve inteiro nas minhas forças e fraquezas, que percebo como coisa minha. Uma casa feita de muros que redimem, de solidão e silêncios prontos a serem quebrados, de acontecimentos e rebeliões que bradam alto a sua força, de mulheres insolentes e notáveis invisíveis que teimam em não calar a sua voz.

Aglutinando um universo riquíssimo em figuras arquetípicas de uma sociedade profundamente doente, “A Galeria dos Notáveis Invisíveis” oferece-nos uma releitura do conjunto da obra de Afonso Valente Batista, acrescentando-lhe a novidade do actual momento pandémico e dos “donos disto tudo” que parecem multiplicar-se como cogumelos. Em trinta e cinco contos cuidadosamente burilados, o autor passa em revista os tempos, modos e lugares dos seus trabalhos anteriores, fazendo repousar a atenção sobre o legado de pobreza de quarenta e oito anos de ditadura, as consequências da Guerra do Ultramar, a solidão que toma conta dos mais idosos, o preconceito e a violência doméstica, o poder da Igreja. A amargura e a ironia passeiam-se de mãos dadas pelas páginas do livro. Sempre presente, a crítica social jamais tem um carácter gratuito, erguendo-se sobre as multidões para dar voz àqueles que a não têm.

As “divagações chanfradas” vão-se alinhando nas cuspidelas de Felisberto Rosquinhas, nos trinados do Jasmim, nas observações lúbricas do Carlinhos, na garridice da Dona Cremilde ou nas mijadelas do senhor Amadeu, como tijolos de um edifício que cresce e se afirma na sua substância e robustez. Se contos há que se quedam pela mediania, outros revelam a sua genialidade na forma como se desenvolvem e na mensagem que transmitem. “Marilinda”, a “doente da cama 3, sala 8” é um desses contos de antologia. Ditada pelo professor doutor Marmelo e Sá, a “Oração de Sapiência” é outro pedacinho delicioso, ao qual devo acrescentar “A Dúvida” de Pináculo Tengarrinha, “O Discursador” Chico Calcinhas, a vingança do Bruno nesse extraordinário “O Bairro” e tantos outros. A riqueza de vocabulário e a elegância da construção frásica voltam a mostrar-se como duas das grandes marcas distintivas do autor, conjugando-se na perfeição com a mensagem de denúncia das injustiças que insiste em transmitir. Mais um grande livro de Afonso Valente Batista. A ler, absolutamente.

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