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terça-feira, 19 de outubro de 2021

TEATRO: "Morte de um Caixeiro Viajante"



TEATRO: “Morte de um Caixeiro Viajante”,
de Arthur Miller
Encenação | Jorge Silva Melo
Tradução | Ana Raquel Fernandes, Rui Pina Coelho
Cenografia e figurinos | Rita Lopes Alves
Interpretação | Américo Silva, Joana Bárcia, André Loubet, Pedro Caeiro, Pedro Baptista, José Neves, Paula Mora, Tiago Matias, Sara Inês Gigante, Rita Rocha Silva, Vânia Rodrigues, Ana Amaral, António Simão, Hélder Braz e Joana Resende
Produção | Artistas Unidos
120 Minutos / Maiores de 12 anos
TEMPO - Teatro Municipal de Portimão
16 Out 2021 | sab | 21:00


“Tudo bem, miúdo. Vou mostrar-te a ti e a toda a gente que Willy Loman não morreu em vão. Ele tinha um sonho bom. O único sonho que vale a pena ter — ser o número um. Lutou muito, e agora hei-de consegui-lo por ele.”
Arthur Miller, “Morte de um Caixeiro Viajante”

“Morte de um Caixeiro Viajante”, a peça de Arthur Miller, não terá mudado o mundo, mudou a nossa percepção do mundo. Foi escrita em 1948, estreada em 1949, ficou anos em cena na celebérrima encenação de Elia Kazan e nunca mais deixou os palcos do mundo inteiro. É uma peça que ecoa dentro de nós, uma tragédia moderna do cidadão comum que, nas asas do sonho americano, encontra na impotência e inutilidade do fracasso a derradeira violência. É por isso que nesta casa dos Loman não vamos encontrar grandes automóveis, garagens, televisões, sabonetes, aspiradores. Está lá um frigorífico que é pago a prestações e percebemos rapidamente que tudo o mais é pago a prestações. Os dias para Linda Loman, a mulher de Willy Loman, são feitos de contas e cálculos a pensar no fim do mês e nos seguintes enquanto, às escondidas do marido, vai cozendo meias de forma a poupar algum dinheiro.

Mas não é apenas sobre rejeição e abandono que a peça nos fala. É sobre a mentira. Somos convidados a mentir e todas estas pessoas mentem. Willy Loman mente à mulher, tem uma amante ou mesmo várias amantes, nos vários locais da América que vai visitando e colocando amostras de produtos para vender. Os filhos mentem. O mais velho roubou, mentiu, fugiu, esteve preso, voltou para casa; a mãe mente, fingindo uma felicidade que não tem. Toda a família – e Arthur Miller, como muito do teatro americano, é um autor que se centrou na família, herdeiro do teatro de Ibsen, que sempre reconheceu como seu mestre – é uma rede de mentiras que se encontram ao pequeno-almoço. E é sobre isso que “Morte de um Caixeiro Viajante” nos fala, cruzando realidade e ficção, sonho e fantasia, fantasmas e banalidades, num carrossel cada vez mais misterioso que irá acabar da pior forma.

Fazendo do palco um lugar de conflito e pensamento, “Morte de um Caixeiro Viajante” apresentou-se no Teatro Municipal de Portimão perante uma plateia muito bem composta de público. Apoiada num dispositivo cénico simples mas extraordinariamente versátil, a peça prendeu os espectadores do início ao fim, graças à força de um texto que é um sentido “requiem” por uma sociedade baseada no triunfo individual. A “leitura” de Jorge Silva Melo consegue adequar este retrato magoado do sonho americano ao tempo presente, multiplicando interpretações e pontos de vista que não podem deixar de nos tocar a todos. Talvez se esperasse um Américo Silva mais histriónico, mas a sua contenção acaba por dar o espaço que Joana Bárcia e André Loubet precisavam e que tão bem souberam ocupar. Pela actualidade do texto, pelo drama que se esconde naqueles que levam a vida a enganar-se a si próprios, pelo nível das interpretações e da encenação, esta foi uma grande noite de teatro. O pano cai antes do fim, deixando-nos a sós com os nossos medos, a nossa vulnerabilidade, a nossa solidão. Com a nossa morte.

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