LIVRO: “Quando Servi Gil Vicente”,
de João Reis
Ed. Elsinore, Outubro de 2019
Anrique de Viena, Anrique Hispano,
Anrique dos Cascos ou, simplesmente, Anrique. É esta a personagem
cujas palavras e acções preenchem “Quando Servi Gil Vicente”, o
mais recente romance de João Reis, dando conta das aventuras e
desventuras deste “aprendiz e valido” de Gil Vicente, regressado
ao convívio do mestre após longa ausência de uma década a pelejar
por essa Europa fora. Sob a forma de uma longa carta, Anrique
estende-nos a mão e convida-nos a acompanhar os derradeiros dias do
dramaturgo e poeta, a dimensão humana posta em evidência sobre o
seu génio criador, ao mesmo tempo mergulhando o leitor nessa cidade
violenta, de ares insalubres e gentes boçais que é a Lisboa do
segundo quartel do século XVI.
Na escrita refinada de João Reis, como
na recriação dos ambientes de quinhentos, são muitos e bons os
motivos que recomendam a leitura de “Quando Servi Gil Vicente”. O
autor mostra-se exímio na reconstituição de uma sociedade fechada,
medieval, imune aos ventos humanistas que sopravam da Europa, curvada
à forte influência do dogmatismo religioso e do misticismo sobre a
cultura e a sociedade. Uma sociedade feita de gente de fraco “cabedal
de entendimento”, voltada sobre si mesma, de expediente fácil,
sobrevivente, mesquinha, menosprezando os valores que norteiam o
conhecimento e desconsiderando e caluniando os seus melhores. Fá-lo
à custa de uma escrita visualmente muito rica, assente numa
linguagem que recupera algumas preciosas pérolas do nosso
vocabulário - da ventana às pantalonas, dos mirabólanos ao aguazil
– e na deliciosa apropriação de um estilo narrativo carregado de
ambiguidades, suposições e redundâncias, ao mesmo tempo elegante e
profundamente poético, remetendo claramente para a obra de Gil Vicente.
Em toda a sua dimensão, “Quando
Servi Gil Vicente” não pode deixar de ser visto como uma sentida
homenagem àquele que é tido como o pai do teatro português. João
Reis revela um particular cuidado no tratamento dado ao material
biográfico reunido, devolvendo-nos um Gil Vicente despeitado com a
magra pensão que recebe da coroa, em conflito com aqueles que na
corte o querem denegrir, atormentado por um passado que não se
escreve apenas de glórias, continuando a fazer da palavra a sua mais preciosa arma mas mostrando-se completamente exausto, o tempo e as
ideias escassos face às encomendas que continua a receber e a
aceitar. É disto que o mui fiel Anrique se faz arauto,
oferecendo-nos o seu peculiar ponto de vista através de uma prosa picaresca, engenhosa, criativa e recheada de momentos insólitos e muito divertidos. Narrado em contínuo, quase de um fôlego, este é um livro que se lê na mesma medida, revelando em
João Reis um criador com uma imaginação delirante, um sólido
domínio da escrita e um sentido de humor ímpar. Gil Vicente não
desdenharia ter um servo assim.
Tenho que ler. João Reis é impar até na clareza oral..
ResponderEliminarForte abraço Margarido e umas excelentes festas...