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segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

LIVRO: "Quando Servi Gil Vicente"



LIVRO: “Quando Servi Gil Vicente”,
de João Reis
Ed. Elsinore, Outubro de 2019


Anrique de Viena, Anrique Hispano, Anrique dos Cascos ou, simplesmente, Anrique. É esta a personagem cujas palavras e acções preenchem “Quando Servi Gil Vicente”, o mais recente romance de João Reis, dando conta das aventuras e desventuras deste “aprendiz e valido” de Gil Vicente, regressado ao convívio do mestre após longa ausência de uma década a pelejar por essa Europa fora. Sob a forma de uma longa carta, Anrique estende-nos a mão e convida-nos a acompanhar os derradeiros dias do dramaturgo e poeta, a dimensão humana posta em evidência sobre o seu génio criador, ao mesmo tempo mergulhando o leitor nessa cidade violenta, de ares insalubres e gentes boçais que é a Lisboa do segundo quartel do século XVI.

Na escrita refinada de João Reis, como na recriação dos ambientes de quinhentos, são muitos e bons os motivos que recomendam a leitura de “Quando Servi Gil Vicente”. O autor mostra-se exímio na reconstituição de uma sociedade fechada, medieval, imune aos ventos humanistas que sopravam da Europa, curvada à forte influência do dogmatismo religioso e do misticismo sobre a cultura e a sociedade. Uma sociedade feita de gente de fraco “cabedal de entendimento”, voltada sobre si mesma, de expediente fácil, sobrevivente, mesquinha, menosprezando os valores que norteiam o conhecimento e desconsiderando e caluniando os seus melhores. Fá-lo à custa de uma escrita visualmente muito rica, assente numa linguagem que recupera algumas preciosas pérolas do nosso vocabulário - da ventana às pantalonas, dos mirabólanos ao aguazil – e na deliciosa apropriação de um estilo narrativo carregado de ambiguidades, suposições e redundâncias, ao mesmo tempo elegante e profundamente poético, remetendo claramente para a obra de Gil Vicente.

Em toda a sua dimensão, “Quando Servi Gil Vicente” não pode deixar de ser visto como uma sentida homenagem àquele que é tido como o pai do teatro português. João Reis revela um particular cuidado no tratamento dado ao material biográfico reunido, devolvendo-nos um Gil Vicente despeitado com a magra pensão que recebe da coroa, em conflito com aqueles que na corte o querem denegrir, atormentado por um passado que não se escreve apenas de glórias, continuando a fazer da palavra a sua mais preciosa arma mas mostrando-se completamente exausto, o tempo e as ideias escassos face às encomendas que continua a receber e a aceitar. É disto que o mui fiel Anrique se faz arauto, oferecendo-nos o seu peculiar ponto de vista através de uma prosa picaresca, engenhosa, criativa e recheada de momentos insólitos e muito divertidos. Narrado em contínuo, quase de um fôlego, este é um livro que se lê na mesma medida, revelando em João Reis um criador com uma imaginação delirante, um sólido domínio da escrita e um sentido de humor ímpar. Gil Vicente não desdenharia ter um servo assim.

1 comentário:

  1. Tenho que ler. João Reis é impar até na clareza oral..
    Forte abraço Margarido e umas excelentes festas...

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