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quinta-feira, 6 de junho de 2019

TERTÚLIA: "Conversas Úteis", com Itamar Vieira Junior



TERTÚLIA: “Conversas Úteis”,
com Itamar Vieira Junior
Museu de Ovar
04 Jun 2019 | ter | 21:30


Um dos paradigmas que mais se tem alterado nos últimos tempos tem a ver com uma cada vez maior proximidade entre escritores e leitores, fruto da promoção crescente de iniciativas que vão das apresentações de livros ou das comunidades de leitores, às grandes manifestações como os festivais literários ou as feiras do livro. Em Ovar, as tertúlias à roda dos livros são uma realidade cultivada desde 2013, muito por obra e graça de Carlos Nuno Granja, que teima em remar contra a corrente e em trazer ao encontro dos leitores importantes nomes ligados sobretudo às letras. Aqueles que amam os livros, reconhecem e valorizam este esforço e percebem que trazer às “Conversas Úteis” um autor da craveira de Itamar Vieira Junior, o vencedor do Prémio LeYa 2018, representa a possibilidade única de privar com um dos grandes escritores do nosso tempo.

Marcada pela informalidade, esta sessão deu a conhecer Itamar Vieira Junior nas suas dimensões enquanto escritor e enquanto pessoa. Profundamente envolvido com os grandes problemas sociais do nosso tempo, o escritor sabe que a literatura é uma arma poderosa e usa-a em busca da verdade, denunciando os abusos e combatendo as injustiças. É disto que trata o seu romance “Torto Arado”, na verdade a estrela da noite em Ovar. Protagonizado por mulheres, o livro foca-se em comunidades específicas do sertão brasileiro e que o escritor conheceu de perto, quer no âmbito da sua actividade profissional, quer também como parte do seu percurso académico como geógrafo de formação e doutorado em Estudos Étnicos e Africanos. “São comunidades de trabalhadores rurais que descendem de escravos. São pessoas que, apesar da abolição da escravatura, nunca deixaram de ser escravos de facto, indivíduos de terceira classe, sujeitos à servidão”, refere, acrescentando que “havia uma revolta em mim, precisava de contar esta história a partir da realidade destas pessoas, uma realidade ainda muito presente nos dias de hoje no Brasil e que os brasileiros desconhecem”. E conclui: “Este livro é um grito!”

Influenciado por escritores como Guimarães Rosa, Jorge Amado ou João Cabral de Melo Neto, Itamar Vieira Júnior começou a escrever ainda na adolescência. O projecto dum eventual primeiro livro, narrando as venturas e desventuras de duas irmãs, terminou ao fim de oitenta páginas. Dele chegou até hoje apenas o título, “Torto Arado”, que o escritor foi buscar à poesia de Tomás António Gonzaga. Ou talvez tenha chegado também algum pedacinho dessa ideia inicial, sobretudo quando percebemos que (quase) tudo se passa em torno das irmãs Bibiana e Belonísia. Escrito ao longo de um ano e meio, o livro foi submetido a concurso ao Prémio Leya e a expectativa quanto a uma eventual vitória nunca passou pelas cogitações do escritor. Daí que quando Itamar Vieira Junior, depois de ter sido informado da decisão do júri pelo próprio Manuel Alegre, ligou para a mãe a dar a notícia, a resposta não se fez esperar: “Deve ser trote, meu filho”. Não foi “trote” e, daí em diante, foi um nunca mais acabar de emoções, que tiveram o primeiro momento alto com a edição inaugural do livro em Portugal, em Fevereiro passado, e muito recentemente, quando o autor recebeu o Prémio, durante a Feira do Livro de Lisboa. Agora é a vez do Brasil acolher a publicação de “Torto Arado”, já no próximo mês de Agosto, e esse será, quiçá, o momento mais aguardado nesta viagem de sucesso: “Espero que o livro tenha um bom alcance junto dos leitores brasileiros”, diz.

Já na recta final da conversa, o público, que acorreu em número considerável ao Museu de Ovar, não se coibiu de colocar questões ao escritor, dele extraindo um conjunto de ideias que ajudaram a complementar toda a conversa inicial. Quanto ao Prémio LeYa, Itamar Vieira Junior reconhece que “tem uma chancela forte” e que “a responsabilidade quanto a próximas obras que possam vir a público aumenta”. Todavia, “escrever é um projecto de vida e eu continuaria a escrever, independentemente do prémio”, diz. Outro aspecto interessante ventilado pelo escritor refere-se às conexões entre “Torto Arado” e alguns títulos de autores portugueses, dando como exemplo José Saramago e “Levantado do Chão”. A propósito, diz: “Há aspectos comuns a ambos os livros que têm um enorme valor universal – o amor à terra, o pão que dela se extrai – e que acabam, forçosamente, por tocar os leitores”. E falou-se, claro, de política, essa entidade presente em tudo o que fazemos e mesmo no que não fazemos: “Num mundo imediatista, estarmos aqui reunidos, esquecidos da televisão ou do telemóvel, é um acto político. Uma subversão!” Uma bela subversão, diga-se, numa bela noite de conversa que, tão cedo, não se esquecerá.

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