TEATRO: “Amores Pós-Coloniais”
Criação | André Amálio
Co-criação e movimento | Tereza
Havlíčková
Criação musical | Pedro Salvador e
Romi Anauel
Colaboração | Selma Uamusse e Toni
Fortuna
Cenografia | Pedro Silva e Hugo Migata
Interpretação | André Amálio, Júlio
Mesquita, Laurinda Chiungue, Pedro Salvador, Romi Anauel, Tereza
Havlíčková
Produção | Hotel Europa
90 minutos | Maiores de 14
FITEI – Festival Internacional de
Teatro de Expressão Ibérica
Teatro do Campo Alegre - Sala-Estúdio
10 Mai 2019 | sex | 19:00
“Love is – if it is really love –
a form of eternal dynamism and at the same time fidelity to the first
encounter. It is a tension, or better, a sort of dialectics: between
dynamism and fidelity. The same holds for Revolution. The moment when
a revolution stops to reinvent, not only social and human relations,
but stops reinventing its own assumptions, we usually end up in a
re-action, in a regression. A truly revolutionary moment is like
love; it is a crack in the world, in the usual running of things.
Love is Revolution!”
Srećko Horvat, “The Radicality of
Love”
São seis actores em palco. Recuam no
tempo e falam de amor, dos seus amores, definem a forma como os vêem
e sentem, falam das primeiras vezes. E das segundas e das terceiras.
Esclarecem que estão ali para falar de amor. “Não estamos
interessados em teatro político, não. Queremos falar de amor. De
amor pós-colonial”, afirmam. E falam do amor que
encontraram na pequena aldeia de Pontével, no concelho do Cartaxo,
numa juke-box em Lourenço Marques, no nascimento duma criança nos
Açores, num clube de Lisboa. Mas também do Porto e de Coimbra e de
Angola e de Moçambique e da Guiné-Bissau e do Brasil. Tal como
Srećko Horvat, gritam que “o amor é Revolução”.
Como que pretendendo colocar um ponto
final num ciclo que teve o seu início com “Portugal Não É Um
País Pequeno” (2015) e prosseguiu depois com “Passa-Porte” e
“Libertação” (ambos de 2017), projectos que passaram em revista
o período do Estado Novo e da Guerra Colonial, o colectivo Hotel
Europa começa por afirmar a sua vontade em desligar-se do teatro de cariz político, mas cedo se percebe uma profunda
ironia nesta “carta de intenções”. Assentando no teatro
documental, “Amores Pós-Coloniais” mergulha fundo no espaço
colonial e pós-colonial, em busca do amor (ou da possibilidade do
amor) em condições sociais, culturais e políticas particularmente
controversas. Para tal, a companhia encetou uma residência artística
em Pontével, recolheu dezenas de depoimentos e trouxe dezasseis desses
testemunhos à Sala-Estúdio do Teatro do Campo Alegre,
vertendo-os, incómodos, “a frio”, sobre o público. Dezasseis
testemunhos que foram dezasseis murros no estômago. Em nome da
verdade!
Ao longo de quase duas horas, iremos
percebendo que “Amores Pós-Coloniais” levantam um conjunto de
questões às quais a sociedade portuguesa teima em não responder.
André Amálio, Tereza Havlíčková e o restante elenco fazem
questão de partilhar com o público o seu próprio testemunho, a
surpresa que foi escutarem as histórias de violência gratuita no
estalar do conflito armado nas antigas províncias ultramarinas, a
surpresa ao perceberem a forma como uma mulher negra era espiada à
mesa para garantir se comia com garfo ou simplesmente com as mãos, a
surpresa de verem como outra mulher negra, acompanhada do filho ainda
criança, foi racial e sexualmente atacada num autocarro em Lisboa, a
surpresa de sentirem o medo na alma do homem negro que foge e se
esconde nas ruelas do Bairro Alto, nessa mesma noite em que um
português, Alcino Monteiro, foi cobardemente assassinado por um
bando de cabeças rapadas, apenas porque a cor da sua pele era
diferente. A surpresa – meu Deus, a enorme surpresa! - de ver os
comportamentos e atitudes do líder desse mesmo bando branqueados num
programa de televisão em Portugal. Não em 1995, à data do crime,
não vinte anos depois, mas em 2019. Na manhã de 3 de janeiro de
2019. E uma palavra sobe-nos à boca, como um vómito: vergonha!
Amor e revolução. Revolução e amor.
Mas como falar de amor quando a mulher preta é objectificada, usada
e abusada, os frutos das relações imorais mantidas com uma parte
desse milhão de jovens soldados que demandaram as colónias entre 1961 e 1974 espalhado por toda a África,
Portugal a assobiar para o lado sem reconhecer os nascidos nestas
condições como cidadãos portugueses de pleno direito? E como falar de amor quando o
homem preto, sobrevivente do horror e trazido para Portugal, convive
com aquele que matou ou ajudou a matar os seus pais
(podia ser António Lobo Antunes a “massacrar-nos” com a
narrativa doentia de “Até Que As Pedras Se Tornem Mais Leves Do
Que A Água”)? Ou como falar de amor quando a rapariga, tentando
esbater os estigmas da sua cor, alisando os cabelos, os cremes a
clarearem a pele, deixa de gostar de si própria (aqui é Djaimilia
Pereira de Almeida e o notável “Esse Cabelo” que nos relembra o
“drama” da mulher preta)? “Amores Pós-Coloniais” é uma
preciosa achega para um debate que está por fazer. Um debate
urgente, como o amor!
[Foto: Filipe Ferreira / tndm.pt]
Sem comentários:
Enviar um comentário