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terça-feira, 13 de novembro de 2018

LIVRO: "Doida Não e Não!"



LIVRO: “Doida Não e Não!”,
de Manuela Gonzaga
Ed. Bertrand Editora, Fevereiro de 2018


No meu percurso de leitor assíduo e atento, devo confessar que não encontro em biografias um apelo particularmente sedutor. Passam-me pelas mãos de longe em longe, sempre por manifesto interesse em aprofundar o meu conhecimento sobre a vida dos biografados, mas fica-me, normalmente, um sabor a desilusão, ora porque a obra se embrenha em considerandos “técnicos” que a tornam fastidiosa e de difícil entendimento, ora porque se revela demasiado ligeira, a ficção a assomar aqui e ali, retirando-lhe a necessária credibilidade. Daí que comece, desde já, por tirar o chapéu a “Doida Não e Não!”, de Manuela Gonzaga, obra que se configura como honrosa excepção à particular regra da minha experiência pessoal, trilhando com rigor e determinação caminhos de risco e sabendo evitar os muitos escolhos que, seguramente, lhe foram surgindo pela frente. O que é uma virtude!

Não caindo em excessos de qualquer ordem, a autora oferece-nos uma narrativa intensa e rica de imagens, ao encontro de Maria Adelaide Coelho da Cunha, uma mulher “presa num manicómio por um crime de amor”, como se pode ler na própria capa do livro. O caso desta mulher da alta sociedade do início do século passado, que se vê legalmente privada de liberdade apenas por dar livre curso aos ditames do seu coração, configura um dos mais lamentáveis erros da história da justiça portuguesa, sobretudo porque assente em “doutos” pareceres médicos e confirmado por decreto. Mas ele é também a imagem dum País pequenino e mesquinho, que menorizava o papel da mulher na sociedade e fazia tábua-rasa dos seus direitos, um estigma que, desgraçadamente, vingou até aos dias de hoje.

Detalhando todo o intrincado processo, enquadrando os vários momentos nos espaços que lhes são devidos, pintando retratos de época de enorme riqueza e contextualizando de forma objectiva cada desenvolvimento – os momentos de clausura no Hospital do Conde de Ferreira são disto um bom exemplo -, Manuela Gonzaga oferece-nos uma narrativa intensa e absorvente, de grande rigor histórico, simultaneamente fascinante e aterradora pelo que encerra de maldade humana, arbitrariedade e prepotência, mas também de força e coragem numa luta desigual pelo direito ao reconhecimento e pela reposição da verdade e dignidade. Particularmente interessante é a estrutura formal da narrativa, afastando-se do eixo central sempre que importa particularizar, a ele regressando com a repetição do que ficara dito anteriormente, num “tomar o fio à meada” inteligente e que o leitor agradece. Um excelente livro e que é, ao mesmo tempo, um importante sinal de alerta numa sociedade que ainda vê a mulher como o “sexo fraco” e tem um problema não resolvido com questões como paridade e igualdade de género, discrepâncias salariais e precariedade e, voltando ao assunto do livro, com a forma discriminatória como a justiça portuguesa continua a olhar para a mulher em pleno século XXI.

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