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quarta-feira, 18 de abril de 2018

LIVRO: "Gente Séria"



LIVRO: “Gente Séria”,
de Hugo Mezena
Ed. Planeta Manuscrito, Fevereiro de 2018


Talvez deva começar por referir que a leitura de “Gente Séria” constitui uma agradável surpresa, não apenas pela desenvoltura demonstrada por Hugo Mezena na recriação de personagens e ambientes mas sobretudo pela forma subtil como consegue brincar com coisas sérias. É isso que se intui logo no primeiro capítulo – com o sugestivo título de “O Sovaco” - e se confirma à medida que a leitura avança, ora suscitando saborosas gargalhadas, ora obrigando a engolir em seco.

Nesta sua primeira obra, o autor serve-se do olhar dum rapazinho de dez anos para traçar o retrato social duma comunidade rural à beira da viragem do milénio e, por extensão, deste país que temos e somos. Um retrato que tem o seu início em 1987 e que, partindo do núcleo familiar mais restrito – onde pontuam uma catrefada de tios e um avô com rotinas no mínimo estranhas -, se estende ao padre e à catequista, ao presidente da Junta e ao tractorista, à professora e ao “simplório” do lugar. E que nos mostra do que a natureza humana é capaz numa pequena aldeia grávida de hipocrisia, inveja, ciúmes, transgressões, rivalidades, calúnias, traições e boas e más acções. Aliás, uma das leituras possíveis de “Gente Séria” consistirá, porventura, em pensar, à luz destes retratos, um País que é um verdadeiro paradoxo, no qual as assimetrias se agravam a cada dia que passa, tão próximo de tudo mas sempre tão afastado, um país “simplex” feito de gente simples, mas acima de tudo de gente séria (com aspas ou sem elas, como se queira).

Da leitura de “Gente Séria” ninguém sai incólume. A acção tem data mas não é datada. É impossível ao leitor não se rever numa parte substancial do que ali é narrado, se não como elemento sugestivo das suas próprias vivências, pelo menos das de muitos que lhe são próximos. Benomilde pode não ter este nome no mapa, mas aquela aldeia existe na realidade e não é, garantidamente, uma caricatura. Com uma escrita fácil e apelativa, “Gente Séria” está recheado de momentos deliciosos, permitindo-me destacar esse “registo de pecados” que, com os anos e o entendimento, se verá transformado em “registo de pensamentos”. Já na parte final do livro, Hugo Mezena brinda-nos com um Interlúdio que é, ao mesmo tempo, uma marca distintiva do seu génio enquanto escritor. O olhar acutilante atinge aí o seu expoente máximo, num registo avassalador que subjuga o leitor, obrigando-o a olhar para o interior de si mesmo e a pensar o mundo e os homens tais como eles são.

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