LIVRO: “O Muro”,
de Afonso Valente Batista
Ed. Glaciar, Outubro de 2013
Quando li “O Muro” pela primeira vez, prometi a mim mesmo que haveria de
tornar a ele. Porquê? Porque me impressionou, desde logo, a verdade da
escrita de Afonso Valente Batista, a vertigem dos momentos de vida
e morte descritos no livro, a crueldade gratuita, os homens feitos às
pressas. Agora que acabo de o reler com redobrada
admiração e interesse, descubro ainda um motivo mais, que faz com
que “O Muro” seja, na minha opinião, uma obra incontornável para quem queira compreender um pouco melhor esse terrível
equívoco que foi a Guerra do Ultramar. Um motivo que
podemos encontrar plasmado nas palavras do próprio autor: “Vai-se
falar sempre pouco, muito pouco, do muito e medonho que por aqui se
passa”.
“Aqui”, no caso concreto, é o
Norte de Angola, num tempo marcado pelos “adeus, até ao meu
regresso” que, para cerca de 9.000 portugueses, foi “em caixa de
pinho”, como canta Adriano. É, pois, da morte em vida para aqueles
que por lá andaram, que nos fala “O Muro”, um livro-testemunho
e, ao mesmo tempo, acutilante e revelador documento dum Portugal
“parado, estático, temeroso, controlado, silencioso, miserável,
ignorante, inculto”.
Afonso Valente Batista gere, de forma exemplar, o necessário distanciamento emocional face a uma realidade que viveu de perto e um inevitável apego aos
factos, preservando-os da contaminação dos discursos retóricos, das conclusões fáceis, das frases feitas. Recorre, para tal, às figuras
“improváveis” do Mouraria, “de quem não se sabia nem o nome
próprio nem o crisma, só a alcunha”; do Almeida, “a eliminar,
pacientemente, dias no calendário da gaja das mamas grandes”; do
Pimenta, “o Aires de apelido e olho mais ou menos parado”; do
Lino, “o Dr. Lino, adornado em brandy com o fígado em
decomposição”; do Bibi, do Resende ou do Pacação, “que
alegravam o amanhecer com renhidos despiques de peidos”; do Pedro
Paulo, “num caixão estranhamente leve, talvez por só levar o
louro do cabelo e o verde dos olhos”; do Costa, “o cabo Costa,
acompanhado por uma aranha disforme e peçonhenta, que se tinha
inculcado no cérebro vinda daquele lugar”. Ainda do João, a única
pessoa de eterna confiança que o Costa, o cabo Costa, conhecia,
“porque o tinha convencido a ter orgulho em construir um muro sem
saber para que servia mas que lhe aliviava as dores da alma.”
Uma última nota para dizer que este
livro é marcante face à minha própria realidade. Não que tenha
estado em África no delicado período da Guerra do Ultramar, mas
pelos “estilhaços” que me atingiram nos tempos de Serviço
Militar Obrigatório, em 1982, alguns dos quais conservo como
“animais de pouca estimação”. Nesses tempos recalcados, vivi uma realidade “de parada e caserna” muito próxima
da descrita no livro, igualmente com “brigadeirais discursos”
para impressionar a “tropa pardaleja”, o convite à
operacionalidade permanente em improváveis teatros de
operações ao virar da esquina e muita gente frustrada, incompetente e mesquinha, a destilar estupidez e boçalidade sempre que a Guerra era para ali chamada. Deixo, assim, o meu reconhecido obrigado ao autor, com o
renovado incentivo a que leiam “O Muro” e percebam “o tempo que
o tempo teve até aqui chegar”.
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