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domingo, 6 de novembro de 2022

CINEMA: "Alma Viva"



CINEMA: “Alma Viva”
Realização | Cristèle Alves Meira
Argumento | Cristèle Alves Meira, Laurent Lunetta
Fotografia | Rui Poças
Montagem | Pierre Deschamps
Interpretação | Lua Michel, Ana Padrão, Jacqueline Corado, Ester Catalão, Duarte Pina, Arthur Brigas, Catherine Salée, Martha Quina, Leonel Reis, Sónia Martins, Amadeu Alves, Eliane Caldas, Viriato Trancoso, Valdemar Santos, São Domingos, Nuno Gil, Pedro Lacerda
Produção | Pedro Borges, Geëlle Mareschi
Portugal, França, Bélgica | 2022 | Drama | 85 Minutos | Maiores de 14
Cinema Vida
04 Out 2022 | sex | 16:00


Pesada, impetuosa, a chuva atravessa as nuvens e derrama-se sobre a aldeia como uma benção dos céus. Os rostos erguem-se para a receber sem reservas, os braços e as mãos abrem-se como que a querer agarrá-la por inteiro. Também os vastos montes em volta, até há minutos pasto das chamas e agora libertos do martírio, se mostram apaziguados, gratos pelo milagre do refrigério. Castigada, fumegante, aquela terra é a nossa terra, aquela gente somos nós. A sua alma é a nossa. Imensa, verdadeira, generosa, viva. O apertado, insuportável nó na garganta, dá lugar a um choro convulso, intenso, jubiloso. Um choro que só eu sei, apenas chorado nos momentos mais felizes da minha vida. Porque “Alma Viva” é um momento da mais pura felicidade. Nele se reúnem todas as explicações que mil compêndios não saberiam revelar, que mil palestras se encarregariam de complicar. Porque o viver e o morrer não se explicam, porque no simples facto de existirmos se concentra o maior (o único?) mistério da nossa passagem na terra. Porque a alma é muito mais do que essa entidade à qual nos agarramos para justificar dúvidas e certezas. Porque, com a força e a violência do irremediável, é na morte que encontramos o sentido da vida.

Cristèle Alves Meira tem uma alma grande. Uma alma viva. Fala dos lugares e das gentes com a propriedade de quem os sente, de quem tem aí as suas raízes, de quem percebe nos olhares e nos gestos a força da ancestralidade, de quem sabe que “os vivos fecham os olhos aos mortos, mas os mortos abrem os olhos aos vivos”. Não por acaso, centrou a acção na aldeia de Junqueira, concelho de Vimioso. Ali nasceu a sua mãe e é lá que, a cada Verão, regressa com a família, esquecendo a vida de emigrante em França por breves semanas. Aí, a realizadora acrescentou ao seu próprio imaginário as emoções fortes da crendice religiosa, das práticas pagãs, das festas da aldeia, das figas feitas atrás das costas, do “corpo aberto”, dos espíritos dos mortos, das bruxas que espreitam a cada esquina, dos defumadouros, das rezas a S. Miguel santo guerreiro ou dos chás de arruda, porque grandes males pedem grandes remédios. Misturou-o com a generosidade de uns, a inveja de outros, o ressentimento de mais uns quantos e o coração à beira da boca, que isso todos o têm… et voilà! Sem papas na língua, “Alma Viva” agarra-nos desde o primeiro instante com a sua honestidade e a sua verdade, provando o quanto esta vida é um cinema e o cinema a própria vida.

Notável é a forma como a realizadora transmite, por intermédio do filme, o conhecimento baseado na tradição oral e que passa de geração em geração. Os mais novos são fiéis depositários de rezas, cantos e ladainhas escutadas a pais e avós, apesar da feroz concorrência da televisão, dos telemóveis e dos jogos de computador. Cristèle Alves Meira sabe mexer-se como ninguém no estreito e sinuoso caminho onde se cruzam espíritos do além e novas tecnologias, barracos em ruínas e grandes “maisons” com piscina, ruas estreitas e potentes mercedes, orações ao Santíssimo e a música de Nel Monteiro. Mas é de complementaridade e não de contradição que o filme fala, a roda do tempo impulsionada por histórias e memórias que se estendem a perder de vista, a solidez da narrativa assente na alma viva daqueles montes esquecidos de Deus e das pessoas que neles habitam. Os mesmos montes que, tomados pelo fogo, obrigam a que se evacue a aldeia e se salvem os vivos, enquanto um cortejo fúnebre rompe por entre o fumo e nos vem dizer que a prioridade é tratar dos mortos. E depois vem aquela chuva benfazeja, remate triunfal duma verdadeira ode à vida e que sinto correr-me ainda cara abaixo...

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