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sábado, 16 de abril de 2022

CINEMA: "Um Herói"



CINEMA: “Um Herói” / “Ghahreman”
Realização | Asghar Farhadi
Argumento | Asghar Farhadi
Fotografia | Ali Ghazi, Arash Ramezani
Montagem | Hayedeh Safiyari
Interpretação | Amir Jadidi, Mohsen Tanabandeh, Sahar Goldust, Fereshteh Sadre Orafaiy, Ehsan Goodarzi, Sarina Farhadi, Maryam Shahdaei, Alireza Jahandideh, Farrokh Nourbakht, Mohammad Aghebati, Saleh Karimaei, Ali Ranjbar, Fatemeh Tavakoli, Amir Amiri
Produção | Asghar Farhadi, Alexandre Mallet-Guy
Irão, França | 2021 | Drama, Thriller | 127 Minutos | Maiores de 12
Cinema Vida
15 Abr 2022 | sex | 18:15


Asghar Farhadi regressa em força ao Irão, ao encontro dos costumes e da vida em sociedade no seu país. Fá-lo com “Um Herói”, filme que recebeu o aplauso unânime da crítica e que lhe valeu o Grande Prémio do Júri na última edição do Festival de Cannes. Seguindo as coordenadas do cinema que o notabilizou, “Um Herói” desloca o olhar ao explorar uma declinação diferente da sociedade iraniana moderna, passando da metrópole para a pequena cidade, do caos de Teerão para a realidade aparentemente mais calorosa e acolhedora do pequeno centro urbano de Shiraz. O filme conta a história de Rahim, um homem que é preso por não conseguir saldar uma dívida. Aproveitando um curto período de licença, busca um entendimento com o seu credor depois de a namorada ter encontrado na rua, dentro de uma bolsa, dezassete moedas de ouro. Mas o credor recusa o acordo e Rahim decide devolver as moedas ao legítimo proprietário. Inesperadamente, o gesto transforma-o num herói, mas as consequências do mediatismo em que se vê envolvido farão com que um buraco ainda maior se cave aos seus pés.

Partindo de uma história aparentemente simples, Asghar Farhadi mostra um enorme domínio do argumento na forma como problematiza o seu desenvolvimento, expondo a realidade da sociedade iraniana actual e a forma como absorveu os mecanismos mediáticos típicos do Ocidente. “Um Herói”, como o próprio título sugere, explora a realidade dicotómica que leva a opinião pública a eleger rapidamente os seus heróis e, com a mesma facilidade, a fazê-los passar de bestiais a bestas, a descartá-los e a lançá-los na lama. A internet e as redes sociais funcionam como verdadeiros “tribunais” populares que podem, muito rapidamente, decretar a popularidade ou a desgraça de um ser humano. Nesse sentido, o protagonista é levado a enfrentar um julgamento a dois níveis: o de seu pequeno núcleo familiar, amigos e vizinhos incluídos, dispostos inicialmente a apoiá-lo para mais tarde o repudiarem; e também o da massa anónima, habitantes de uma mesma aldeia global, sujeita às mesmas dinâmicas, mas multiplicadas exponencialmente.

Entre a alienação urbana da metrópole e a intimidade impiedosamente julgadora daqueles com quem vive, Rahim procura encontrar o seu lugar. Um mecanismo que, afinal, vale tanto para ele quanto para Bahran, o credor, duas figuras que parecem ir trocando de papéis em favor da opinião pública ao longo da história. Dois indivíduos diametralmente opostos na apresentação que o filme faz deles (o primeiro, brando e submisso, contrastando fortemente com o estereótipo do preso; o segundo, orgulhoso e inflexível), mas unidos nessa realidade de duas pessoas comuns catapultadas para uma situação extraordinária. Dois inimigos por acaso e não por escolha, envolvidos a contragosto numa disputa que os transformou, sob diferentes ângulos, em vítimas, esgrimindo os seus argumentos no caldeirão mediático. Um caldeirão que não poupa nada nem ninguém, nem mesmo os eventos familiares mais dolorosos: a forma grave de gaguez que atinge o filho do protagonista também se alimenta do julgamento mediático e do capricho das redes sociais, numa lógica tão ao gosto de uma vasta franja de públicos nas sociedades ditas modernas.

Dedicando uma particular atenção às imagens, à articulação do argumento e à construção cuidadosa do ritmo e enredo narrativos, Asghar Farhadi devolve-nos um olhar impiedosamente agudo sobre a realidade moderna da sociedade iraniana: uma sociedade que parece ter absorvido muito - infelizmente não o melhor - do modelo ocidental, a começar precisamente pela utilização das redes sociais, pela difusão descontrolada das “fake news” e da exploração de uma realidade frequentemente descontextualizada, que enquadra impiedosamente os indivíduos e os seus comportamentos. Ao mesmo tempo, não esquece os aspectos mais específicos, tais como a realidade de uma associação voluntária que deve fazer a escolha dramática entre salvar a vida de um condenado à morte, num país onde os assassinatos estatais são a norma, ou ajudar um indivíduo em dificuldades que se viu ultrapassado pelos efeitos dos seus próprios passos. A capacidade de ser, ao mesmo tempo, particular e universal, é talvez a principal força do cinema de Asghar Farhadi, plenamente confirmada neste seu último trabalho.

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