“O jornalista pediu, então, um comentário às eleições que se aproximavam. Para Egas Moniz, a palavra mais exata seria ‘nomeações’. O uso da fórmula democrática das eleições consistia numa ‘camuflagem’ a que as ditaduras recorriam. ‘Não vale a pena lutar sem haver iguais meios de propaganda, recenseamentos honestos dos eleitores, intervenção da oposição nas mesas primárias e nas subsequentes operações eleitorais. Sem isso não há luta, há… imolação.’ A frase seguinte seria puxada pelo jornalista para título: ‘A COMÉDIA VAI REPETIR-SE!’ ”.
Escrevo esta recensão sob o signo do entusiasmo, começando por dizer que “A Glória Efémera”, de Paulo M. Morais, é talvez a mais extraordinária biografia que li até hoje. Página após página, assiste-se à construção de um vasto fresco humano, intelectual e histórico, onde a figura do Nobel da Medicina surge em permanente diálogo com o seu tempo. A escrita, elegante e segura, revela um autor que domina as fontes, cruza saberes e encadeia episódios biográficos e bibliográficos com conta, peso e medida. O resultado é um livro que se lê como fonte de investigação e como narrativa, o prazer da descoberta de mãos dadas com a solidez do método. Ao enumerar e contextualizar feitos e datas, Paulo M. Morais faz emergir um homem inteiro, contraditório e fascinante, cuja glória - científica, política e social - se revela sempre transitória, sujeita ao desgaste do tempo, das circunstâncias e das paixões humanas. Essa consciência atravessa toda a obra, conferindo-lhe uma densidade reflexiva que vai muito além do mero registo celebratório.
Uma das dimensões mais marcantes do livro é a atenção dedicada ao Egas Moniz político, figura central dos conturbados anos da Primeira República - e, mais tarde, voz desassombrada contra a ditadura do Estado Novo. Paulo M. Morais evidencia a inteligência estratégica, o calculismo frio e a notável capacidade de intervenção de um homem que fez da política um jogo complexo, de avanços e recuos, de alianças provisórias e rupturas calculadas. O autor recorre de forma particularmente feliz à imprensa nacional e, sobretudo, regional, usando-a como espelho do País e instrumento de análise do seu pulsar político, económico, social e moral no primeiro quartel do século XX. Esse trabalho minucioso permite reconstituir não apenas os debates e as crises, mas também o ambiente, os humores e as expectativas de uma sociedade em permanente sobressalto, dando à biografia uma espessura coletiva que a embeleza e engrandece.
No plano científico, “A Glória Efémera” acompanha com rigor e clareza o percurso do descobridor da arteriografia cerebral e, mais tarde, da leucotomia pré-frontal, técnica distinguida com o Prémio Nobel. O autor descreve o labor persistente face à escassez de meios, o método, as dúvidas e as certezas, bem como a teia de amizades, cumplicidades e rivalidades que rodearam Egas Moniz. À medida que o reconhecimento internacional cresce, avoluma-se também a montanha de detratores, invejosos e caluniadores, num ambiente onde a ciência se cruza com vaidades, interesses e ressentimentos. O momento do Nobel surge como ápice e viragem. A consagração individual transforma-se em palco para a visibilidade da ciência portuguesa, mas também em objecto de um aproveitamento político descarado e vergonhoso por parte do regime de Salazar, que a seu bel-prazer fez questão de instrumentalizar a glória alheia para legitimar a sua própria narrativa.
O livro acompanha o progressivo isolamento do homem, mas também o regresso do político que ousou bater-se na defesa do livre pensamento e que disse sentir-se prisioneiro na sua própria terra, tornando-se símbolo involuntário do protesto contra a ditadura do fascista Salazar. Os últimos anos, marcados pelo intensificar das crises de gota e pela reclusão na Casa do Marinheiro, em Avanca, são narrados com sobriedade e humanidade. Pelo caminho, surgem apontamentos de múltiplos registos, dos menus opíparos de receções e jantares de gala aos oito tiros disparados sobre si no consultório lisboeta, dos passeios de moliceiro na Ria de Aveiro à correspondência com sábios ilustres e cidadãos anónimos, do apreço pelos nossos maiores escritores, com destaque para Júlio Dinis, aos prazeres simples da vida no campo. Expressões de época ou palavras grafadas no original acrescentam verdade e oferecem textura e calor ao retrato do biografado, lembrando-nos que, para lá da glória efémera, permanece o homem, com as suas fragilidades, paixões e desejos de permanência.
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