TEATRO: “Um Inimigo do Povo”
Encenação, espaço cénico e desenho de som | Pedro Damião
Direcção de cena | Sandra Macedo
Cenários e adereços | Artur Leite e José Correia
Figurinos | Cecília Pinho
Interpretação | Miguel Duarte, António Ferreira, Andreia Lopes, Inês Costeira, Iara Duarte, Francisco Costeira e Francisco Alves
Produção | Contacto - Companhia de Teatro Água Corrente de Ovar
Festovar - Festival de Teatro de Ovar
Auditório Manuel Ramos Costa
15 Nov 2025 | sab | 21:45
Depois de “Casa de Bonecas”, a Contacto volta a debruçar-se sobre a obra do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen, levando à cena “Um Inimigo do Povo”, nesta que é a sua 84.ª produção. Espectáculo de encerramento de mais uma edição do Festovar, “Um Inimigo do Povo” mostra-nos o Dr. Thomas Stockmann, interpretado por Miguel Duarte, na figura de um médico que descobre que a água das Termas da cidade, seu verdadeiro ex-libris e fonte maior de rendimento, está contaminada e constitui uma ameaça à saúde pública. Este facto servirá de ponto de partida para a exposição das tensões entre ciência, política e comunicação social, mostrando como a discussão pública se tornou previsível num clima sociopolítico carregado de desinformação. A peça explora jornalistas enviesados, políticos arrogantes e um público habituado a ver factos tornarem-se subjectivos, ecoando temas que dominam a vida pública contemporânea. As interacções com a plateia, na segunda metade da peça, revelam um consenso quase automático sobre estes diagnósticos sociais e reforçam a sensação de que Stockmann não denuncia nada que o espectador já não saiba: a informação fragmentada pelas redes sociais, a política guiada pelo individualismo e um fluxo constante de informação que desgasta o bem-estar intelectual. Mesmo a pergunta retórica do protagonista - quando foi que os factos deixaram de ser factos? - surge mais como constatação de um cansaço colectivo do que como uma provocação verdadeiramente nova.
O conflito dramático intensifica-se quando Stockmann tenta publicar o relatório sobre a água contaminada e se vê confrontado por forças que deveriam estar do seu lado. O seu irmão Peter, o frio e calculista Presidente da Câmara, procura evitar o escândalo; os editores do jornal local, inicialmente aliados do médico, começam a hesitar quando percebem que a denúncia pode ameaçar equilíbrios políticos e económicos. Com ironia e precisão, a peça desmonta a relação simbiótica entre imprensa e poder político, revelando como ambos se condicionam mutuamente e se afastam do papel transformador que reivindicam. A encenação de Pedro Damião reforça visualmente essa tensão: as paredes pairam negras como ameaças latentes, as entradas e saídas de cena fazem-se por “bocas” que parecem tudo engolir, há música metaleira que irrompe a espaços como forma de alienação que mascara a crise subjacente. A peça ganha força com o monólogo incisivo de Stockmann, interpretado por Miguel Duarte com uma certa arrogância e muita determinação. A participação da plateia, conduzida pela dupla Francisco Costeira e Inês Costeira, transforma o teatro num fórum improvisado, ampliando as provocações do texto e expondo as fragilidades do debate público contemporâneo.
Apesar da energia e da criatividade formal, a peça deixa algumas questões apenas esboçadas. A dúvida sobre a autoridade de uma única pessoa e sobre o valor que se pode atribuir a uma opinião individual é levantada, mas não explorada com profundidade. Stockmann é desacreditado, mas a peça pouco discute os critérios que fazem uma voz singular ganhar ou perder poder num ecossistema saturado de opiniões. Paralelamente, à medida que cada personagem revela a sua própria corrupção moral, surge uma interrogação mais ampla: será que todo o interesse colectivo é, no fundo, individual? E será o altruísmo apenas uma forma disfarçada de egoísmo? Estas ideias emergem no íntimo do público, convocadas pelas suas convicções éticas e morais e menos pelo texto em si, o que pode fortalecer o objectivo dialógico do teatro, mas também expõe uma lacuna entre a ambição provocatória do espectáculo e a profundidade das respostas que oferece. Assim, embora esta versão de “Um Inimigo do Povo” seja audaz na forma e eficaz a gerar debate, acaba por oferecer menos confrontação directa do que promete, deixando ao espectador o trabalho de preencher as ambiguidades éticas e políticas apenas delineadas. Duas notas finais, a primeira para os actores que moderam a discussão na plateia e a quem se pede outra “qualidade” na argumentação. A segunda vai para as interpretações de Miguel Duarte e António Ferreira: Papéis fortes exigem actuações fortes e a dupla principal não esteve à altura do que se lhe exigia. Como referiu Fernando Rodrigues, Director do Festovar, no discurso de encerramento, há muito para melhorar… e esse muito está praticamente todo aqui!
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