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quarta-feira, 19 de novembro de 2025

CONCERTO: “Na Natureza de Júlio Dinis” | Solange Azevedo | FRA Ensemble



CONCERTO: “Na Natureza de Júlio Dinis”,
de Solange Azevedo
FRA Ensemble
Direcção musical | Marco Pereira
Interpretação | Ana Rosa (soprano), Eduardo Seabra (clarinete), Rodrigo Allen Pinho (percussão), Marta Nabeiro (violoncelo)
INoVAR AS LETRAS
Escola de Artes e Ofícios
15 Nov 2025 | sab | 17:00


“Repara: — a imóvel crisálida
Já se agitou inquieta,
Cedo, rasgando a mortalha,
Ressurgirá borboleta.”
Julio Dinis, in “Metamorfose”

Música, palavra e performance marcaram o encerramento das II Jornadas Dinisianas. Como quem rasga uma fenda no tecido do tempo, o FRA Ensemble caminhou rumo ao interior da natureza de Júlio Dinis, numa viagem que abriu ao romantismo oitocentista a possibilidade de respirar no peito da contemporaneidade. Nos passos do poeta que em Ovar encontrou prazeroso refúgio, o agrupamento fez da Escola de Artes e Ofícios um prolongamento vivo do Museu Júlio Dinis, projectando um corredor invisível ao longo do qual palavra e música se ergueram em graça e beleza. Perspicaz e audaciosa, Solange Azevedo soube cruzar a leveza da poesia dinisiana com a matéria silenciosa de um herbário, os vestígios do pólen secular com o sopro vivo de uma escrita impetuosa. Entre palavras e folhas, as suas composições foram ao encontro de uma vida muito jovem mas já marcada pela doença, fazendo alternar os momentos de êxtase criativo com os frémitos sombrios da incurável tuberculose. A tradução de estados de alma tão díspares teve no FRA Ensemble um interlocutor de excelência, capaz de estabelecer um diálogo improvável da voz e dos instrumentos convencionais, com o rumor subtil dos objectos recolhidos no Museu, transformando um momento de vincada improvisação numa forma de arqueologia sensorial fortemente inspiradora.

Na sua riqueza e complexidade sonora, o concerto revelou-se precioso no que encerrou de risco artístico, oferecendo às Jornadas Dinisianas uma última e tão necessária respiração. Laboratório fecundo, Ovar foi palco do cruzamento do gesto plástico e compositivo de Solange Azevedo com o pensamento curatorial de Ana Isabel Freijo, das sonoridades subterrâneas de Tiago Schwäbl com a pulsação exploratória do FRA Ensemble. Um a um, criadores e músicos pareceram escutar o interior de cada objecto antes de o tocar, interrogando-se que histórias guardariam, que ressonâncias carregariam em si na viagem entre o Museu e a Escola. Desse diálogo do convencional com o inesperado, do instrumento com o artefacto, emergiu uma espécie de metamorfose sonora, talvez anunciada pelo poema homónimo que incendiou toda a segunda metade do concerto. A cada nota do clarinete ou do violoncelo, a cada som arrancado aos objectos do Museu ou a cada inflexão vocal, era o próprio Júlio Dinis que observava, discreto, a reinvenção da sua natureza. Ainda que por instantes, a literatura fez-se música, a música fez-se imagem e a imagem fez-se reminiscência, o todo fluindo como um rio que cava novos leitos sem nunca perder a noção da nascente.

E porque a cultura se faz arriscando, criando e renovando, o concerto não se limitou à simples apresentação de uma obra enquanto resultado de uma residência artística no âmbito desse projecto maior que é o INoVAR AS LETRAS, com curadoria de Ana Isabel Freijo e que se estenderá até finais de Março do próximo ano. Ele foi antes um gesto de escuta profunda, as raízes do passado como manancial criador de novos conceitos e linguagens. A residência artística foi estufa onde se cultivaram possibilidades, onde o realismo dinisiano repousou ao lado do romantismo, as crónicas conversaram com a poesia e o silêncio, esse lugar de espera e de suspeita, se viu convertido em impulso criativo. Apesar da sua juventude enquanto agrupamento, o FRA Ensemble mostrou que a improvisação pode ser, não uma ruptura, antes um modo de continuar o tanto que há por dizer. Do cruzamento dos espaços, do entrelaçar dos tempos, uma verdade simples parece aflorar à superfície: Há obras que só se cumprem quando ousam atravessar fronteiras. “Na Natureza de Júlio Dinis” é uma delas. E assim se abriu o instante em que o escritor se desvela, mostrando que a leveza da sua escrita não é ausência de peso, mas algo de mais profundo que só a consciência de uma vida breve saberá explicar.

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