TEATRO: “Teatro Paraíso / Palavra Ambulante”
Texto e encenação | José Rui Martins
Colaboração dramatúrgica | João Maria André, José Saramago, Michel Séonnet
Cenografia e desenho gráfico | Zétavares
Música de cena | Mia Henriques
Figurinos | Eva Pereira
Interpretação | Afonso Cortês, José Abrantes, Maria Ferreira, Mia Henriques
Produção | Trigo Limpo Teatro ACERT
XI Festival Literário de Ovar
Biblioteca Municipal de Ovar (espaço exterior)
21 Set 2025 | dom | 19:30
“O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. Às quatro da madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha em terras de França, levantava-se da enxerga e saía para o campo, levando ao pasto a meia dúzia de porcas de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher. (…) Chamavam-se Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha esses avós, e eram analfabetos um e outro. No inverno, quando o frio da noite apertava ao ponto de a água dos cântaros gelar dentro da casa, iam buscar às pocilgas os bácoros mais débeis e levavam-nos para a sua cama. Debaixo das mantas grosseiras, o calor dos humanos livrava os animaizinhos do enregelamento e salvava-os de uma morte certa”.
Um avô doou em testamento a sua carrinha de cinema / biblioteca ambulante aos três netos para que continuem o seu legado. Artistas desempregados, cumprem a vontade do avô, ainda que não saibam todos os segredos do ofício. Entre muitas peripécias, darão conta do recado? Que fazer? Têm uma leve ideia do que lhes foi contado sobre o avô e de terem assistido a filmes e escutado, quando eram gaiatos, memórias soltas da vida dele contadas pelos pais. Para não defraudarem o público, vão manifestar o embaraço, pedindo-lhe ajuda. Acabam por interpretar teatralmente memórias imaginárias e fantásticas, sonhos, risos e inquietações onde a palavra é protagonista. Desejam “só uma casa com o tamanho do Mundo… Casa da Hospitalidade.”
Em 1958, a Fundação Calouste Gulbenkian substituiu-se ao Estado Novo que não estava muito interessado em cidadãos esclarecidos e informados e colocou em circulação as primeiras quinze bibliotecas itinerantes, chegando esse número a atingir as sessenta e duas unidades. Durante mais de quatro décadas, as bibliotecas levaram a todo o país livros e ajuda para os escolher, que chegou a ser prestada pelos poetas Herberto Hélder e Alexandre O’Neill. Desta maneira, milhões de pessoas puderam ter acesso a livros, o que de outra forma não teriam conseguido. O elemento inspirador deste espectáculo resulta das memórias das Bibliotecas Itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian, idealizando-se, para tal, um elemento cénico fundamental: Uma réplica das icónicas Citröen HY. Daí que o espaço seja palco e seja também memória, daí a escolha do mesmo modelo para dar vida ao engenho Ambulante, fazendo com que a Palavra continue a voar.
Acompanhando sempre os seus desempenhos artísticos e comunitários com a construção de engenhos cénicos de grande envergadura e forte impacto visual, a Trigo Limpo Teatro ACERT passa a ter, agora, um teatrinho em todas as localidades de acolhimento, onde a escuta do mundo é como o pão para a boca. Há muito que a ideia os perseguia. A fonte inspiradora era, por si, um elemento que, na actualidade, é mágico. Como imaginar que, há mais de sessenta anos, uma carrinha percorreu os lugares mais recônditos de Portugal para proporcionar à população do interior a leitura, transportando livros aos quais, de outro modo, as nossas gentes nunca teriam acesso? O caminho escolhido leva o espectador ao encontro de um conjunto de personagens que, não sabendo ler, inventaram formas de o fazer singelamente, lendo a vida e os sonhos com o passajar dos dedos pelas páginas dos livros. Um convite à aventura feliz, impulsionada pelos conhecimentos daqueles que, podendo não saber ler, souberam criar universos oníricos e sentimentais de grande autenticidade.
 
Sem comentários:
Enviar um comentário