“A necessidade de ‘escrever’ uma pessoa para, de alguma forma, nos apaziguarmos com ela ou dela nos libertarmos, é o que me tem movido para escrever sobre o papel do Paulo na minha vida. Transformando-o em personagem, alimento a crença de que ele passe a pertencer mais a estas páginas do que à minha vida. É uma tentativa de me salvar, não pela fuga, mas pelo encontro na escrita. Um encontro feito de palavras. Passei anos a evitar pensar nele, a fugir, e não resultou, pelo contrário. Talvez só desta forma eu consiga eliminar a sua presença, como se estivesse a limpar finalmente toda a areia que ficou colada entre os dedos dos pés.”
“Leme” narra a história de Madalena, uma criança que cresceu num ambiente familiar disfuncional, assistiu à separação dos pais e, mais tarde, viveu com a mãe e o padrasto. O clima de tensão e os episódios frequentes de violência doméstica obrigaram-na a carregar dentro de si um peso esmagador. Em estado de alerta permanente, soube que um som mais brusco ou um olhar mais frio poderia ser o prenúncio de um novo momento de terror. O medo tornou-se o seu idioma secreto; aprendeu a ler o ambiente com olhos de sobrevivente, a esconder-se no silêncio, a antecipar a raiva como quem tenta adivinhar uma tempestade. Raros, os gestos de amor surgiam feridos, confusos, raramente seguros. Na ausência de conforto, aprendeu a alimentar-se da solidão - não porque quisesse, mas porque nela encontrava algum refúgio, algum controlo. A fúria e a tristeza misturaram-se com uma culpa que não era sua, mas que se instalou como se fosse. Cresceu depressa demais, mas por dentro permaneceu prisioneira, parada no tempo, o coração cheio de perguntas sem respostas e uma carência funda, incapaz de nomear.
“Escreve de forma clara e limpa sobre o que dói.” A frase de Ernest Hemingway está na origem de uma obra literária incisiva e libertadora, exercício catártico que possibilitou a Madalena Sá Fernandes resolver um passado sempre presente e assumir com normalidade a figura de uma pessoa que, além do que fez sofrer, sofreu também de maneira intensa. Dividido em capítulos curtos, o livro mescla os momentos de tensão com os de acalmia, vertidos em longos dias de férias na praia, nas pequenas alianças, no gosto da mãe pela leitura - “os livros dela pareciam sobreviventes de guerra; acabavam enrugados, com páginas amareladas pelo café ou danificadas pela cinza dos cigarros, marcas de quem lhes imprimia vícios enquanto absorvia as virtudes.” São momentos felizes, que servem de contraponto às conturbadas vivências junto de alguém que sofria de bipolaridade, vivia obcecado pela organização e pela arrumação, e que tinha nos ímpetos de agressividade, nos insultos, nos gritos ou nas portas arremessadas com dramatismo, traços distintivos de uma personalidade doentia.
Narrado na primeira pessoa, o romance revela-se de uma enorme coragem, a escritora a partilhar com o leitor um viver e um sentir que foi o seu. Fá-lo de forma inteligente, alimentando uma proximidade cuidada às situações de maneira a imprimir-lhes a carga dramática que verdadeiramente possuem, mas distanciando-se o suficiente para evitar a prosa condescendente, a tentação panfletária ou a vitimização. Ao assumir o livro no plano literário como excelente obra que é, mostra a sua rejeição pelo sensacionalismo e foge do universo da auto-ajuda. A escrita é fluida, solta, recheada de momentos com os quais o leitor facilmente se identifica, integrando na história o calor da compreensão e da empatia por alguém que vive em solidão. Eis a melhor forma de iluminar a vida de Madalena e de ergue-la no que tem de intrinsecamente humano, bom e justo. Entre o romance biográfico e a auto-ficção, “Leme” é um retrato de vida amargo, de uma crueza que agride no que tem de medo e dor, mas ao mesmo tempo redentor, pelo que revela de firmeza, esperança e força de viver.
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