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domingo, 5 de outubro de 2025

CONCERTO: "Anónimos de Abril" | Joana Alegre, José Fialho Gouveia e Rogério Charraz



CONCERTO: “Anónimos de Abril”
Com | Joana Alegre, José Fialho Gouveia e Rogério Charraz
XI Festival Literário de Ovar
Escola de Artes e Ofícios
19 Set 2025 | sex | 22:30

“Naquele 25 de Abril de 1974, um restaurante em Lisboa, situado na Rua Braancamp, celebrava um ano de existência. Para assinalar o aniversário, o gerente comprara cravos para oferecer às clientes. Mas com uma revolução em marcha o restaurante não abriu as portas e as flores foram distribuídas pelos funcionários. Celeste Caeiro, na altura com 40 anos, pôs-se a caminho de casa e cruzou-se com os tanques e os militares. Houve um que lhe pediu um cigarro, mas ela não tinha. Entregou-lhe, em vez disso, um cravo, que ele colocou no cano da espingarda. E, assim, Celeste criou para sempre a ligação entre os cravos e a liberdade.”

E se Abril fosse apagado da memória? Não o Abril dos livros ou dos palcos consagrados - que a esse nada nem ninguém o poderá apagar -, mas o outro, o dos rostos sem nome, das mãos anónimas que também fizeram história. Rogério Charraz, nascido depois da Revolução, tropeça um dia na história de Celeste Caeiro e é como se ouvisse Abril respirar pela primeira vez. Com José Fialho Gouveia, jornalista e letrista, decide erguer um palco onde as vozes caladas encontrassem música. Joana Alegre soma-se à viagem e as histórias ganham ainda mais corpo, ainda mais alma. E assim nasceu “Anónimos de Abril”, um espetáculo de canções que celebram as figuras escondidas por entre os ecos de cravos e memórias. O espetáculo cresceu, ganhou estrada, percorreu o país e encontrou novas histórias no coração do público. A memória de Abril alargou-se, ramificou-se. A coroar uma noite de celebração da palavra, “pousou” na Escola de Artes e Ofícios, tirando da sombra heróis discretos e enchendo de luz uma noite de liberdade.

Celeste Caeiro é apenas um dos “anónimos” celebrados num espectáculo que traz a Abril um rol de protagonistas cujas vozes e gestos nunca saíram do pequeno reduto da suas própria liberdade. Está neste caso Francisco Miguel Duarte, conhecido como Chico Sapateiro, um dos dez condenados que fugiram de Peniche em 1960. No total, passou vinte e um anos atrás das grades, dez dos quais no Tarrafal, para onde foi desterrado em duas ocasiões. Foi ele o último preso do campo de concentração aquando do seu primeiro encerramento, em janeiro de 1954, tendo passado seis meses sozinho com os carcereiros. Está também Belmira da Conceição Gonçalves, conhecida como a Sãozinha e que foi assassinada em 1962, na sequência do protesto das populações contra a decisão das autoridades da Ilha da Madeira em desviar as águas que corriam na Levada do Moinho para um novo curso. A PSP decidiu intervir em força e abriu fogo e uma das balas atingiu mortalmente a jovem estudante. Estão ainda Aurora Rodrigues e o Padre Alberto Neto, Benedicto Sousa Villar e Francisco Sousa Mendes, Jorge Alves e Arajaryr Campos e tantos outros, descobertos em relatos partilhados com outros “anónimos” ou em conversas com historiadores e guardiões da memória.

Numa sala cheia de gente com Abril nos genes, o concerto logrou esse desiderato maior de dar vida às vidas de outrora, contando a revolução dos cravos em vozes que nunca tiveram microfone, em gestos que não couberam nos jornais. José Fialho Gouveia abria cada um dos catorze temas com as histórias que lhes serviam de base. Rogério Charraz e Joana Alegre emprestavam a voz aos significativos e muito belos poemas e Sérgio Charrinho (trompete), Carlos Garcia (piano e clarinete) e Luís Pinto (baixo) cumpria a sua função de retaguarda, emprestando substância e consistência às histórias partilhadas. Numa dessas partilhas conhecemos Luísa, presa e torturada pela PIDE, que vive até hoje na angústia de ter aberto a porta à prisão do namorado ao admitir que pertencia ao PCP. Celeste Caeiro partiu em Novembro de 2024. Na altura da estreia do espectáculo, só quatro dos dezanove homenageados se encontravam vivos e Celeste era um deles. Rogério Charraz resumiria tudo num aviso decidido: “Se não preservarmos estas histórias, elas vão-se perder, vão-se esfumar.” Abril foi feito por muitos e muitos desses ainda esperam ser lembrados. Foi com este sentimento que, de pé, se cantou “Grândola Vila Morena”, a fechar um extraordinário serão.

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