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sexta-feira, 12 de setembro de 2025

TEATRO: "Chuva Pasmada"



TEATRO: “Chuva Pasmada”
Texto original | Mia Couto
Adaptação, direcção artística e encenação | Leandro Ribeiro
Compositor, pianista | Hélder Bruno Martins
Design, desenho e execução de figurinos | Marta Baldaia
Desenho de cenografia e adereços | Leandro Ribeiro e Marta Baldaia
Sonoplastia e operação de som | Hugo Gamelas
Desenho e operação de luz | Cárin Geada
Interpretação | Clara Oliveira, Mafalda Reis, Maria Inês Campos, Paulo Cruz e Rita Camões, com elementos da comunidade local, Alice Baldaia, Cândida Jardim, Carla Reis, Carmo Seixas, Celeste Lopes, Cristina Santos, Gabriela Silva, Graça Carrapatoso, João Pedro Teixeira, Joaquim Margarido, Leonor Baldaia, Manuela Marques, Maria Silva, Martim Rilho, Rosa Maria Leite, Rosana Henriques
Produção executiva | Clara Oliveira
Apoio à produção | Inês Fonseca
Produção | Sol d’Alma – Associação de Teatro
Promoção | Câmara Municipal de Ovar
100 Minutos | Maiores de 6 anos
Centro de Artes de Ovar
12 Set 2025 | sex | 15:00 e 21:30


“Terás sempre Ítaca no teu espírito,
que lá chegar é o teu destino último.
Mas não te apresses nunca na viagem.
É melhor que ela dure muitos anos,
que sejas velho já ao ancorar na ilha,
rico do que foi teu pelo caminho,
e sem esperar que Ítaca te dê riquezas.”
Excerto do poema “Ítaca”, de Konstantínos Kaváfis (tradução de Jorge de Sena)

“No princípio era o verbo”. Elejo uma frase bíblica para iniciar esta reflexão, mas na verdade é um mistério o porquê dessa escolha. Como é um mistério o convite para fazer parte do elenco desta peça, ou mesmo a razão pela qual o aceitei. Que obra do acaso me terá feito arriscar pisar um palco pela primeira vez, me terá juntado a um grupo tão diverso, disposto a aprender falas e deixas, a seguir a dinâmica de uma peça, a ser pedra e patrão, bailarino e aldeão, enfim, a ser tudo o que me dissessem para ser? Sou daqueles que crê que nada acontece por acaso e, após o “sim” no altar do teatro, eis-me mergulhado na peça, a começar nessa “Chuva Pasmada”, romance de Mia Couto, inventor de palavras e de sonhos, cuja escrita me arrastou desde sempre para lugares de encantamento e magia. O livro é maravilhoso e nele reencontrei o místico, o espiritual e o fantástico, em convivência estreita com o dia-a-dia simples, com a inocência das crianças e o conhecimento milenar dos anciãos, portas e janelas abertas sobre as questões universais da humanidade.

“No princípio era o verbo”, sim. A palavra, o discurso, a lógica, uma espécie de razão ou lei universal. Um preceito que torna o universo inteligível e harmonioso, tão necessário quanto único, tal como se oferece nesta história dominada pelo poder transformador do amor. Do sonho à realidade vai um piscar de olhos, o mesmo piscar de olhos que torna a dúvida em certezas: “Não é possível transpor o romance para teatro”, pensei. Estávamos no início de Agosto e, na Sede do Sol d’Alma, a Clara, a Marta e o Leandro recebiam-nos com o maior dos sorrisos. Falámos de nós, dissemos da peça. Projectada numa tela improvisada, a história de Mia Couto rasgava as fronteiras de cada uma das páginas e, num passe de magia, alcançava uma dimensão insuspeitada. O caminho abria-se em espanto e promessa. Impossível? Quem falou em impossíveis? Titubeante e inseguro, como quem se deixa levar na corrente de um rio largo, parti rumo a Ítaca, disposto a abraçar terras e gentes, mas sobretudo a aproveitar bem a viagem e a abraçar-me a mim próprio.

“Que comecem os ensaios”, pareceu-me ouvir Talma dizer. Passo a passo, o espectáculo foi-se construindo. De surpresa em surpresa, tudo em redor foi sendo força acrescentada à força que vinha de trás. Suave e breve como um fio de água ou pujante e tumultuosa como um rio que promete tudo arrastar à sua passagem, a música de Hélder Bruno Martins vestia as cenas de emoção e sentimento. As luzes de Cárin Geada abriam rios onde só se viam panos, céus onde só havia terra, deuses onde havia apenas gente. O som de Hugo Gamelas levou-me a escutar o que nunca tinha escutado, os ruídos fugazes da floresta, o cavo clamor de um búzio, um frasco de perfume quebrado em mil pedaços. A delicadeza e harmonia dos figurinos de Marta Baldaia acrescentou à peça cor e brilho, fazendo de todos – quero acreditar - pessoas (ainda) mais bonitas. E senti-me bem. Senti-me mesmo bem, investido de uma força inabalável, da certeza das coisas certas, do orgulho de ser peça da engrenagem, elo de inquebrável cadeia, grão da mesma mó.

Em bando, em cardume ou em bolinha, aprendi a interrogar os céus e a remexer as nuvens, a entrar na dança e a rir da desgraça alheia, a chapinhar na água, a recolher lentilhas e a fazer o sinal da cruz. A ser máquina de fábrica e margem de rio, onda e correnteza, rocha que não mexe (por muito que doam ossos e articulações). De fora de cena ou pelo canto do olho, fui sentindo o coração pequenino ao ver como a Clara, a Rita e o Paulo, a Inês, a Mafalda e o Martim, a Maria e o João, cresciam nos seus papéis. Como se agigantavam, enchendo a peça com a força da sua presença, do seu saber estar em palco. Com eles aprendi a ser “forte, polido e maneiroso. Um casca fina. A falar um português com mais ondas que curvaturas”. A afunilar os olhos babões na Rita, que nem pelicano fixando o peixe. Na pose, no gesto e na voz, foram eles a força inspiradora de um grupo de não actores que soube espantar-se, aprimorar-se, crescer. Estão todos no meu coração, em especial a Narradora, que não apenas pelo óbvio.

“No princípio era o Leandro”. Isto dito, sinto que finalmente se quebrou o mistério e tudo se encaixa. Irrepreensível na forma como colocou as peças no lugar certo do tabuleiro e as fez mexer com inteligência, suavidade e elegância, Leandro Ribeiro soube transformar o complexo em simples, alquimista das palavras que é, feiticeiro dos gestos, génio que das pedras faz brotar água – “clara, farta, risonha.” Regresso a “Ítaca”, à viagem, àquilo que é mais importante que o destino. Ao verdadeiro valor da vida que reside no caminho percorrido, nas experiências vividas, no enriquecimento pessoal, que não na conquista de Ítaca. Uma viagem rica e transformadora, que tomou conta de mim por inteiro, que me levou a fazer caretas em frente ao espelho, a dar passeios à beira-mar com a música da peça a rivalizar com os gritos das gaivotas, a implorar ao sono que viesse porque “aquela deixa” não me saía da cabeça, a regressar do trabalho com a pressa de quem sabe que o esperam três horas de empolgante comunhão e partilha. Vou sentir falta desta chuva, sei-o bem. Dentro de poucas horas o pano irá subir. É tempo de entrar em cena com o pé direito. “Pai nosso, cristais no céu…”

[Foto: Manuel Vitoriano | https://www.facebook.com/ovarcultura]

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