“E pensei na facilidade com que nos habituamos a viver entre dois mundos, o possível e o impossível, entre a abundância e a absoluta falta de tudo. E pensei em como, nas minhas primeiras missões, voltava do impossível, onde as pessoas careciam das coisas mais básicas, e, ao entrar numa qualquer loja do possível, me desfazia em lágrimas ao ver as centenas de cores diferentes de verniz das unhas nas prateleiras, ao passo que hoje ando quase sempre com as unhas pintadas, saltando de um mundo para o outro com a maior facilidade, sem sofrimento. Por isso, ao ver a ração de gato que o caro colega tinha deixado para trás, sorri.”
Sudão, Gaza, Afeganistão, República Democrática do Congo, Somália, Síria, Iémen ou Haiti. Estes são apenas alguns dos países onde estão em curso conflitos armados e aos quais as organizações internacionais procuram fazer chegar a tão necessária ajuda humanitária. São países onde a fome e a falta de acesso a serviços básicos são prevalentes, a insegurança é extrema, os sistemas de saúde praticamente colapsaram e os surtos de doenças alastram continuamente. São aos milhares os mortos e feridos que se contam nos vários teatros de guerra, aos quais se somam milhões de deslocados. As catástrofes naturais, como os terramotos no Afeganistão ou a seca na Somália, só vêm agravar ainda mais a situação. Neste ambiente de enorme tensão, carência e sofrimento, os profissionais humanitários arriscam a vida diariamente, desafiando a falta de segurança, as dificuldades logísticas e a necessidade de manter o distanciamento emocional para levar por diante o seu trabalho. Mas é no meio do caos que quase todos eles encontram satisfação pessoal ao sentirem que fazem a diferença na vida de pessoas em situações extremas.
Disto nos fala Tiago Rodrigues em “Na Medida do Impossível”, um livro que, antes de o ser, foi peça de teatro estreada a 1 de Fevereiro de 2022 na Comédie de Genève, com encenação do próprio Tiago Rodrigues e interpretação de Adrien Barazonne, Beatriz Brás, Baptiste Coustenoble, Natacha Koutchoumov e do músico Gabriel Ferrandini. Os mesmos Adrien, Beatriz, Baptiste e Natacha com quem nos cruzamos ao longo do livro e cujos testemunhos resultam de entrevistas feitas a um conjunto de pessoas pertencentes a organizações como o Comité Internacional da Cruz Vermelha ou os Médicos Sem Fronteiras. Aceitam regressar por momentos aos teatros de guerra e partilhar um quotidiano hostil num território que o dramaturgo convencionou baptizar de Impossível – “mas que é tão real como decidir quem vive e quem morre, e é de tal maneira possível que já esteve em todo o lado e pode sempre voltar a qualquer lugar”. Apesar de saberem melhor do que a maioria que não vão conseguir salvar o mundo, qualquer um deles continua a arriscar a vida e a bater-se por um dia melhor, por um momento de dignidade, por pelo menos alguns minutos em que os tiros param e se ouve apenas silêncio.
Quem conhece o trabalho de Tiago Rodrigues sabe que a condenação arrasta consigo a redenção. As histórias nunca são simples ou fáceis, porquanto o mundo não é simples, a violência não é simples, o sofrimento tampouco é simples. Não é turismo, não são férias, é um trabalho a sério o destas pessoas. Cheio de ilusão no início, na certeza de que irão salvar o mundo, para logo perceberem que não vão salvar o mundo, porque o mundo não pode ser salvo. Espera-os longas horas retidos em checkpoints, ruínas e cadáveres, a adrenalina a rivalizar com o cheiro da gangrena, “corpos, suor, roupa velha, cabelo, fezes, humidade, o cheiro a mar em pleno deserto”. À sua volta descobrirão pessoas humanas e brilhantes, mas também os maiores idiotas. Ainda um hospital de campanha improvisado e dezenas de mães com os seus bebés, uma criança com um nome de futebolista mitológico, lençóis brancos e limpos como bandeiras de dignidade, uma noite passada a vigiar uma vala comum, o silêncio na montanha enquanto decorre o resgate de um ferido, um fado na voz de Amália. E que nunca mais esquecerão.
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