“ (…) Imponderáveis, como hão-de marcar profundamente as suas pegadas nos caminhos? Mas, sendo irreais, dão-nos a impressão da realidade. É nosso dever, portanto, restituí-los um pouco à presumível nitidez da sua representação originária.
Mas a minha consciência não descansa. Trabalhei a favor da verdade ou da mentira? Retoquei o quadro, ou falsifiquei-o? E retocar não será falsificar? O que é a arte?”
Teixeira de Pascoaes, in “Duplo Passeio”
A paisagem, enquanto circunstância natural ou construção estética, é muito mais do que um ponto no mapa. Não existe paisagem sem uma ideia que a organize, que atribua sentido ao espaço, que não tenha um olhar capaz de a seleccionar e enquadrar — seja esse olhar artístico, científico ou quotidiano. Neste sentido, a paisagem é, antes de mais, um acto de visão: uma projecção da interioridade sobre o mundo exterior. A fotografia, enquanto dispositivo técnico e estético, introduz uma camada adicional de mediação entre o sujeito e o território, podendo funcionar como ferramenta de transfiguração do real. Transfiguração, aqui, no sentido de transformar o visível, não por adulteração ou embelezamento, mas por revelação — revelação de tensões latentes, de texturas invisíveis ao olhar habitual, de narrativas implícitas que o olhar inocente ou funcional não capta. A paisagem fotografada não é, portanto, uma réplica do mundo, mas uma interpretação crítica do mesmo.
“Falamos de quedas horizontais, de movimento estático, de fragmentação infinita. Paradoxos. A câmara a imobilizar a vida. O que melhor se pode parecer com a eternidade?” Espírito inquieto, na permanente busca de respostas para os mistérios do mundo, Adelino Marques abraça “reinos maravilhosos”, disposto a conhecê-los e a compreendê-los melhor. Inseguro, caminha sobre essa linha imprecisa para a qual espaço e tempo convergem, a tentativa de mãos dadas com o erro. Move-o a busca de um valor para a “eternidade”. Até que o encontra, “um naufrágio de paisagem acelerada ou - melhor! - congelada em três segundos”. Três segundos de ansiosa espera e emoção contida, três segundos de espantosa revelação, de paisagem transfigurada em poema íntimo, onde o real e o onírico se misturam e confundem. O olhar utilitário da fotografia deixa de existir, o mundo de repente suspenso da sua condição habitual para dar lugar a uma experiência estética e reflexiva que desperta a memória e inquieta o olhar.
Uma luz atravessa a planície, cobrindo-a de irrealidade. Uma montanha ergue-se, solene, como se soubesse que está a ser observada. A brisa, ao tocar as ervas, desenha uma espécie de escrita que não sabemos ler. Nas “paisagens transfiguradas” de Adelino Marques o olhar deixa de ser funcional e passa a ser poético. Neste gesto de deter e reconfigurar o olhar a paisagem intensifica-se, torna visível o que, de tão presente, parecia invisível. Esta capacidade de ver o mundo de outro modo não é um mero jogo estético: é uma forma de perturbação. É a fotografia - “simulacro de ascensão, inversão do devir” - a baralhar aquilo que dávamos por garantido, a reconfigurar a nossa forma de habitar a paisagem, de pensá-la e, em última instância, de a imaginar. Transfigurar a paisagem não é manipulá-la: é devolver-lhe a sua capacidade de nos tocar. E, por vezes, basta uma imagem para nos lembrar que o mundo, tal como a arte, nunca se oferece todo de uma só vez. Uma imagem como aquelas que Adelino Marques nos oferece. Só é preciso aprender a vê-lo.
Sem comentários:
Enviar um comentário