“Depois de escrever as minhas confissões, pensei que não tinha mais nada de substancial para recordar, mas continuo a resgatar cenas que estavam intocadas, sem análise recente, como a primeira entrevista que me fizeram aos dezanove anos, publicada num grande meio de comunicação social com todo o tipo de pormenores embaraçosos sobre a minha vida pessoal, ou o moderador que me apresentou numa mesa-redonda fazendo piadas sobre as minhas pernas. No dia seguinte, recusei um convite do pelouro da igualdade da Câmara Municipal para participar num colóquio sobre o machismo no mundo literário. Foi uma das poucas vezes em que a indignação se sobrepôs à minha necessidade de ser educada a todo o custo, e pronunciei-me com veemência contra estes dramas de vitimização. Eu não tinha sofrido qualquer tipo de tratamento discriminatório devido ao meu diagnóstico de género. Quando muito, tinha beneficiado com isso, afinal será que teria sido publicada tão cedo se não fosse uma jovem moderadamente atraente? Tinha a certeza de que não.”
De camionistas e rufias, assédio e violações, lesbianismo e servos do Estado Fálico, mas também de dúvida e culpa acumulada, se faz “Mudar de Ideias”, livro de Aixa de la Cruz, escrito em 2019 e que chega agora às nossas livrarias. Entre biografia, ensaio e auto-ficção, o livro leva-nos a percorrer um caminho que é o da autora, repleto de referências pessoais que não pretendem alimentar tendências voyeuristas ou polémicas estéreis, antes são ponto de partida para a reflexão e o auto-questionamento. Um livro escrito em modo urgente, os assuntos muitas vezes deixados pela metade ante a emersão de novas ideias, novos traumas e mágoas, novas perdas e ganhos. Do Hospital de Basurto, onde uma amiga convalesce de um grave acidente de viação, à história de um casamento falhado, “Mudar de Ideias” vai ao osso dos problemas estruturais que intoxicam as nossas sociedades, partindo da célula familiar - “o que fazer com o legado dos nossos pais, quando é um legado que humilha mas é o único que nos resta?” - e estendendo-se à violência sexual na prisão iraquiana de Abu Ghraib, à onda de feminicídios na cidade mexicana de Puebla ou à exploração sexual de mulheres oriundas da Roménia rural.
Em “Mudar de Ideias”, o leitor é confrontado com uma exposição vincada da intimidade, um pouco à semelhança do que podemos encontrar em Virginie Despentes, por exemplo, mas filtrada por uma linguagem mais ensaística, que dialoga com o feminismo contemporâneo, os estudos de género e a cultura millennial. Se em Despentes a raiva é motor narrativo, em de la Cruz a tensão vem da dúvida, da análise constante, do entrelaçamento entre memória pessoal e construção discursiva. Incisiva e combativa, a autora oferece uma contribuição relevante para o pensamento feminista graças a uma escrita como espaço de exposição e problematização do corpo, do trauma, da sexualidade e da identidade, temas que não são apenas representados, mas activados como zonas de conflito e resistência. Há uma clara recusa em idealizar as mulheres como figuras moralmente redentoras ou essencialmente vulneráveis. São sujeitos contraditórios, muitas vezes encurralados no próprio corpo, marcados por experiências de violência em sociedades vincadamente patriarcais, mas também por uma lucidez crítica que subverte os papéis tradicionais atribuídos ao feminino.
“Mudar de Ideias” é a prova de que um livro não tem de ser forçosamente sórdido, chocante ou sensacionalista quando é de experiências pessoais contrárias a uma moral conservadora que se trata. Íntima e política, a escrita de Aixa de la Cruz desconstrói as normas de género, ao mesmo tempo que aponta o dedo às violências estruturais. Introspectiva, a sua abordagem a um conjunto de assuntos polémicos é pautada pelo desassombro, vestindo de ironia fina o desfiar de uma grande diversidade de histórias que ajudam a perceber o pensamento da autora, a sua sensibilidade, a firme posição de denúncia dos movimentos e contextos que conduzem à objectificação da mulher, mas também das contradições do “eu” feminino nas sociedades neoliberais. Reflexão pessoal, intertextualidade e análise sociocultural, aliam-se ao rigor, solidez e inteligência, abrindo-se em confissão e problematização num caminho evolutivo cada vez mais empático e próximo do outro. Entre o íntimo e o político, entre o eu e o todo, “Mudar de Ideias” é um grande livro, cujo valor de representação do feminino se abre num campo activo de inquietação, combate e criação.
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