Tal como havia começado, chegou ao fim em festa o FESTA - Sons da Lusofonia, que este ano viu cumprida a sua décima edição. E se ontem trouxe aqui as impressões do primeiro dia, no qual pontificaram A garota não, os Cara de Espelho e os Cacique 97, hoje falo dos concertos das CRUA, de Juliana Linhares, dos Fogo Fogo e de Mário Lúcio. De fora, porque não tive oportunidade de os apreciar, ficam Asa Cobra e os Sétima Legião. Mas comecemos pelas CRUA, belíssimo conjunto de cinco vozes no feminino, que se apresentaram com a proposta de uma viagem pela música tradicional, do Minho à Galiza, de Monsanto ao Paúl. De adufe na mão (ou de peneira, vá, que é uma prova de diversidade democrática), Diana Ferreira Martins, Liliana Abreu, Rita Só, Silvana Dias e Rita Sá puxaram pelas vozes e mostraram o quanto de belo pode haver na tradição, ao mesmo tempo que trocaram ideias “sobre este mundo que anda bem louco, mas se calhar consegue estar aqui um bocadinho melhor”. “Moleira”, “Meninas” e “Burriña” abriram o concerto, tornando mais quente a tarde e mais próximos os amigos. Amigos que se se fizeram presentes no bombo de Tiago Sami ou na (maravilhosa) voz de Sara Yasmine, ou que, mesmo ausentes, estiveram na FESTA, casos da Barcia de Mera, Maria Teresa Horta ou uma comunidade sénior do Porto, nesse muito belo “Em Casa”. “Eu hei-de morrer cantando, já que chorando nasci” deu o tom à “Moda da Tosquia”, o concerto fechando com “Ceifeira” e muitos amigos em palco, de longe e de aqui, de agora e de sempre.
Juliana Linhares preencheu o segundo concerto da tarde e foi, garantidamente, uma das maiores surpresas do Festival. Cantora, compositora e actriz, foi mulher e foi coragem nas músicas que interpretou, carregando-as de beleza e de uma alegria incontidas. Tirando partido de uma voz potente e de uma presença em palco fortemente teatral, a artista soube cruzar os ritmos tradicionais nordestinos com a grandeza melódica e poética de compositores como Alceu Valença, Zé Ramalho, Chico César, Zeca Baleiro ou Tom Zé, condimentando-os com um conjunto de notas operáticas e vaudevilescas. Mas nem só de música e performance se fez o concerto, visto Juliana Linhares ter na sua poesia outro ponto forte, com muitos dedos apontados ao preconceito e às diferenças que a sociedade teima em estabelecer no seu seio. Fazendo incidir o alinhamento no seu álbum “Nordeste Ficção” - um Hino ao Nordeste e à afirmação do seu lugar na imensa nação que é o Brasil -, a cantora ofereceu-nos verdadeiras pérolas em “Meu Amor Afinal de Contas” e “Embrulho” - duas parcerias com Zeca Baleiro e Chico César, respectivamente -, “Armadilha” (extraordinário o intróito instrumental do guitarrista Elísio Freitas) e “Tareco e Mariola”. Piscando o olho ao próximo trabalho de estúdio, Juliana Linhares mostrou “Emaranhado”, para logo “regressar ao passado” com “Aburguesar”, “Nordeste Ficção” e “É Mais em Baixo / Lambada da Lambida”. “Frivião” fechou o concerto, mas não termino sem falar de “Bolero de Isabel”, com poemas pintalgados do linguajar nordestino, em rimas verdadeiramente deliciosas.
Se Juliana Linhares navegou nas asas da surpresa, os Fogo Fogo vieram com a certeza de um concerto inesquecível. Primeira banda a repetir a presença no FESTA (depois de uma participação memorável em 2022), os Fogo Fogo puseram a carne toda no assador, mostrando o porquê de serem lídimos representantes do funaná, mas não só. Cultores da lusorritmía, na sua música confluem o samba e o semba, a morna e a marrabenta, o carimbó e o fado. Mas, ainda que o ritmo seja o pai de tudo, a palavra traduz o ritmo e daí que a música dos Fogo Fogo, sendo para dançar, é igualmente para cantar. E foi isso que pudemos apreciar ao final da tarde de sábado, num concerto que encerrou um conjunto de momentos inesquecíveis. Voltar ao baile, voltar à pista, ser ponto de encontro de corpos que se dão em gesto e partilha, foi esta a proposta da banda ao qual o público aderiu de forma incondicional. Dançou, dançou, dançou, cantou e voltou a dançar, levantou o pó do chão e, depois de tanta comunhão e partilha, concluiu que “isto já ninguém nos tira”. Francisco Rebelo no baixo, João Gomes nos teclados, Danilo Lopes e David Pessoa nas guitarras e voz e Edu Mundo na bateria foram incríveis no compromisso com a sua música e como seu público, elevando a FESTA a um patamar de grandeza superior. Para que conste, “Shaft” abriu o concerto e “Sentimento” colocou-lhe um ponto final. Pelo meio ficaram “Nhô Buli”, “Ca Ta Da”, “Nha Riqueza” (tema que dá nome ao último álbum da banda), “Pomba”, Terra Bufa” ou “Oh Minina”. E ainda “É Si Propi”, o palco invadido pelos fãs, numa demonstração única de festa e amizade.
Falo, enfim, do concerto de Mário Lúcio, cantautor, pintor, poeta e político cabo-verdiano, que praticamente encerrou esta edição do FESTA - Sons da Lusofonia. Natural do Tarrafal, na Ilha de Santiago, Mário Lúcio trouxe a Ovar os sons de “Independance”, o seu novíssimo trabalho, num regresso às danças folclóricas anteriormente proibidas e à abertura do país às músicas populares urbanas de Angola, Congo, Guiné, Nigéria, Gana e Senegal. Foi um concerto decididamente festivo, através do qual Mário Lúcio teve o prazer de recordar os primórdios da independência, uma época da sua infância cheia de alegria e de música. No preciso dia em que S. Tomé e Principe festejou os 50 anos da sua independência, os países lusófonos não ficaram esquecidos, Cabo Verde à cabeça, “Cabo Verde, a casa do Mundo”. Com Jery Bidan na guitarra, Dilson Groove na bateria e Ricardo Campos no baixo, trouxe-nos o tema que dá nome ao novo álbum logo a abrir o concerto, ao qual se seguiram “Rabidante”, “Maka Maka” e “Mati Mati”. “Tema de Minis”, “Tabankabé”, “Nha Bio” e “Doce Guerra” aqueceram ainda mais os ânimos e foram muitos aqueles que, na mole imensa de público, fizeram questão de entregar os corpos à dança. “Ilha de Santiago”, talvez o tema mais conhecido do cantor, fez as delícias de todos, o concerto a fechar com a interpretação de “Tabankamor”, “Goré” e “Amo Xintadu”. Uma despedida do FESTA em grande, com a organização a merecer um forte aplauso pela forma como soube levar avante dois dias de grande animação, muita música e comunhão entre todos. Para o ano há mais!
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