TERTÚLIA: “Conversas à Volta do Tanque”
Com Mafalda Cruz e Iolanda Maciel Fontaínhas
Moderação | Joaquim Margarido
Espaços de Pensar - Teias de Sentir
Museu Júlio Dinis - Uma Casa Ovarense
08 Mar 2025 | sab | 16:00
Podem as artes plásticas desencadear uma reflexão sobre o papel da Mulher na sociedade, ou sobre o modo como, ainda hoje, o seu papel é (des)valorizado? “Espaços de Pensar – Teias de Sentir”, projecto multidisciplinar levantado do chão pela artista plástica Rosa Bela Cruz, parte ao encontro desta e outras preocupações, “sempre com as artes plásticas como suporte inicial e a temática da Mulher como pano de fundo”. Neste contexto foram programadas, entre outras iniciativas, três “conversas à volta do tanque”, a última das quais teve lugar no Dia Internacional das Mulheres e permitiu ao muito público presente na acolhedora sala do Museu Júlio Dinis escutar as opiniões da médica e sexóloga Mafalda Cruz e da socióloga Iolanda Maciel Fontaínhas. Sob a moderação de Joaquim Margarido, as convidadas desenvolveram importantes considerações à volta do tema “Nem Castradas Nem Invisíveis, Abordagem da Evolução Social e Sexual da Mulher ao Longo dos Tempos”, debatendo conceitos, revelando factos, esgrimindo números, recordando factores diferenciadores do binómio mulher-homem e questionando os mecanismos de apropriação, depreciação e rejeição da Mulher e do lugar que ocupa na sociedade.
“No Ensino Superior, há 54% de mulheres e 46% de homens, com o número de mulheres diplomadas a ser de 58% e de 42% no caso dos homens. Apesar disto, as mulheres com altas qualificações ganham menos 26% do que os homens, em cargos iguais. Também 3/4 das tarefas domésticas são feitas por mulheres e a violência doméstica tem aumentado, com dezenas de mulheres assassinadas por ano. As questões sexuais e sociais, apesar da grande evolução em alguns aspectos, ainda são tabu para a maioria das pessoas. Falar sobre estes assuntos sem discriminações, sem constrangimentos e sem tabús é fundamental.” Colocando o dedo em várias feridas, as palavras de Rosa Bela Cruz na apresentação da sessão serviram de mote a uma conversa livre de preconceitos, enriquecedora a muitos títulos e com um enfoque especial em palavras como influência, autonomia, certeza, afirmação, equidade, assertividade, confiança e empoderamento. Uma conversa que teve como fio condutor “a paz, o pão, habitação, saúde, educação”, temas lançados à discussão por esta ordem.
De Adão e da sua “costela” a Galeno, da Revolução Industrial aos nossos dias, Iolanda Fontaínhas abordou as relações de poder, a dimensão estrutural do género no que toca à violência
e de que modo as sociedades se organizam, colocando a mulher numa posição de submissão, abuso e violência. Com o dedo apontado aos discursos sociológicos, religiosos e médicos, a convidada lembrou que a ambiguidade legislativa que reside na própria Constituição da República é promotora de desigualdades que implicam lógicas de relações de poder e que, construídas, naturalizadas e reproduzidas, estão na base de fenómenos como a violência doméstica, cujos números assustadores teimam em replicar-se ano após ano. Sobre esta temática, Mafalda Cruz começou por definir a “Saúde Sexual”, segundo a Organização Mundial de Saúde como “o bem-estar físico, mental e social” em relação à sexualidade, para logo referir a falta de abrangência em matéria de educação sexual em Portugal, “legislada desde os anos 90, mas posta em prática de forma muito precária” nas escolas, com conteúdos insuficientes e baseados numa sexualidade restritiva, virada sobretudo para a prevenção de infecções sexualmente transmissíveis e para a prevenção da gravidez.
No tocante ao “pão”, que o mesmo é dizer “trabalho”, o moderador chamou à discussão a Constituição Portuguesa que, no seu Artigo 59.º (Direitos dos Trabalhadores), consagra “o princípio de que para trabalho igual salário igual”, ao qual Iolanda Fontaínhas faz um reparo, arriscando dizer “salário igual para trabalho de igual valor”. Foi tempo de lembrar as disparidades salariais (que chega aos 770 euros entre homens e mulheres num cargo de topo), o facto de 79% das mulheres assumirem a ida ao médico com os filhos ou as tarefas domésticas serem maioritariamente assumidas pela mulher. Mas também as questões de assédio no local de trabalho, e cujas denúncias, segundo Mafalda Cruz, continuam a não ser valorizadas, com muitas das vítimas a serem descredibilizadas ou silenciadas, com a conivência de uma sociedade que continua a tolerar muitas das situações de abuso. Em matéria de habitação, a médica falou das dificuldades “em usufruir da sexualidade e do prazer se o casal luta para conseguir pagar uma casa” ou a viver em condições precárias “com os filhos no mesmo quarto, pais no quarto ao lado, muitas vezes fragilizados e doentes”, sem tempo ou condições sequer “para uma conversa sem interrupções.” À boleia destas preocupações partilhadas, Iolanda Fontaínhas lembra que “as dinâmicas familiares estão a mudar”, reflectindo-se “numa saída de casa tardia, numa constituição de família tardia, num primeiro filho tardio”.
“Em termos de investigação científica as mulheres estão completamente em desvantagem, porque a maioria dos estudos em saúde inclui homens, apenas, o que significa que as conclusões que tiramos são baseadas na fisiologia do homem”. Quem o diz é Mafalda Cruz, estendendo esta realidade aos campos do diagnóstico e do tratamento (“quando uma mulher tem uma queixa cardíaca, o tempo até ser feito um diagnóstico é superior cinco vezes em relação ao homem”). Ao mesmo tempo, desconstruiu as diferenças na resposta sexual entre homens e mulheres e vincou que “mais importante do que ter desejo é ter prazer”. A conversa encerrou com o tema da “educação”, com Iolanda Fontaínhas a evidenciar a escola como “o lugar seguro para podermos alimentar a nossa curiosidade, mas dependente da capacidade de educadores e professores em fazer dela esse lugar seguro”. Ao longo de duas horas de conversa muito mais se falou, mas fica aqui esta proposta de resumo. Importante, mesmo, é que o facto de tantas mulheres estarem sentadas naquela sala a falar abertamente de si, das suas ideias, do seu corpo, da sua sexualidade, é reflexo das muitas conquistas que foram sendo feitas em lutas travadas ao longo dos tempos.” Todavia, como bem lembrou Iolanda Fontaínhas, “múltiplas conquistas coexistem com múltiplos desafios no tocante à igualdade entre os géneros” e há ainda muito caminho por fazer. Ainda que pequenino, aqui foi dado mais um passo.
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