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segunda-feira, 31 de março de 2025

TERTÚLIA | CONCERTO | FINISSAGE: “Espaços de Pensar - Teias de Sentir”



TERTÚLIA | CONCERTO | FINISSAGE: “Espaços de Pensar - Teias de Sentir”
Com | Rosa Bela Cruz, Ana Ferreira, Luís de Matos, Domingos Silva e Grupo Vocal Canto Décimo
Museu Júlio Dinis - Uma Casa Ovarense
29 Mar 2025 | sab | 16h00


“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.”
José Saramago, epígrafe de Ensaio sobre a Cegueira

No trabalho artístico de Rosa Bela Cruz, são várias as particularidades que prendem a nossa atenção. Ainda despojado do ardor crítico, um primeiro olhar abarca a delicadeza do traço, a suavidade da cor, a harmonia do conjunto. Alvo preferencial da atenção da artista, as mulheres figuram nas suas obras em graça e beleza: Sedutoras, ousadas, irreverentes. Ao mesmo tempo frágeis, delicadas, inquietas, angustiadas. Para as mulheres de Rosa Bela Cruz, a certeza de si e do lugar que ocupam está longe de ser chão seguro. A pintura da artista desdobra-se. Como uma moeda, mostra as duas faces. Fosse ela pau e ameaçar-nos-ia com os seus dois bicos. Perante isto, o olhar apura-se. Percorre o quadro e encontra nele matéria de constante desassossego. Detém-se nos olhos das mulheres que, como um íman, o atraem. Olhos grandes e vivos, que se movem incessantemente. Olhos que nos seguem para onde quer que vamos. Nesse encontro de olhos que nos olham, somos invadidos pelo desconforto. Neles encontramos a urgência do muito que têm para contar.

Aproximamo-nos e a inquietação adensa-se. Reparamos que são delicadas as rendas que velam rostos e corpos, que sobre eles fazem pousar as marcas do charme discreto e do bom gosto. Rendas que não são suficientes para disfarçar essas outras marcas, mais fundas e terríveis, da adversidade, da mágoa, do desprazer. Marcas de uma bofetada seguida de um pedido de desculpa, de um murro na boca seguido de cem pedidos de desculpa, de uma facada no rosto seguida de mil pedidos de desculpa. Como se o mal pudesse ser apagado com palavras bonitas. Entre “espaços de pensar” e “teias de sentir”, abraçamos Rosa Bela Cruz neste seu “eterno retorno” a Ovar. Abraçamos igualmente as mulheres que nos trouxe, todas as mulheres. Mulheres como Ana Luísa Amaral, Sophia de Mello Breyner, Adília Lopes, Maria Teresa Horta ou Florbela Espanca que, na verdade da sua poesia, continuam a mostrar-se decisivas na luta contra o preconceito e a discriminação que enfermam uma sociedade conservadora e machista. Arautos da mudança, elevam-se à condição de sujeitos primordiais num contexto de afirmação de princípios e valores que as distingue como sublimes e únicas.

Pudemos olhar e vimos. Pudemos ver e reparámos. Sendo as mesmas, as mulheres de Rosa Bela são agora diferentes. Os tons sombrios quase desapareceram dos seus rostos, os véus são cada vez menos um resguardo, os queixos ergueram-se e as poses fizeram-se causa e razão, vigor e altivez. Não há dúvida de que estas mulheres mudaram. A sua atitude mudou. Também a sua vontade e a sua confiança. São mulheres mais conscientes dos seus direitos, mais fortes, mais audazes. Logo, mais elegantes e graciosas, mais harmoniosas, mais belas. Rosa Bela Cruz tem o dom de, com a sua arte, expressar as emoções mais vivas no que o “ser mulher” tem de íntimo e precioso. Lançamos um último olhar a cada trabalho. Lá encontramos, ainda, uns olhos enormes e penetrantes que parecem não nos querer largar. Eles dizem-nos que há ainda caminho a percorrer no que aos direitos das mulheres e à igualdade de género diz respeito. Mas o olhar destas mulheres é, hoje, o olhar que vê.

[Texto inserto no Catálogo do projecto de Rosa Bela Cruz, “Espaços de Pensar - Teias de Sentir”]

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